sexta-feira, 2 de março de 2012

A chuva fina de Martha Galrão





 
A chuva fina de Martha Galrão
Nilson Galvão
Jornalista e poeta (http://nilsonpedro.wordpress.com/)




A poesia é a mais democrática das artes, até porque em seus domínios quase tudo é permitido. Sem recorrer a purismos desnecessários, até porque todos têm mesmo o direito e o dever de ser poetas para enfrentar as agruras da vida, registre-se no entanto que não é tão fácil ultrapassar a prova de fogo do lugar comum e sintonizar com o que Carlos Drummond de Andrade chamava de “sentimento do mundo”. Por isso a importância de celebrar o advento de livros como “A chuva de Maria”, de Martha Galrão, pela Editora Kalango, a ser lançado na sexta, 5 de agosto, às 18h30, na Livraria Cultura do Salvador Shopping.

Trata-se do livro de estréia da poeta baiana que já apareceu em algumas coletâneas e, como quase todos de sua geração, tem recorrido à internet para divulgar o seu trabalho. Justamente por conta dessas peculiaridades contemporâneas, Martha já chega com uma obra reconhecida pela cena local. “Não pense o leitor que está diante de uma poesia imatura”, avisa o poeta José Inácio Vieira de Melo no prefácio do livro.

A feminilidade e o apuro com a tessitura dos versos são pontos fortes destacados por José Inácio: “Martha escreve como quem passa batom nos lábios, com cuidado, delicadeza, para que não haja nenhum borrado na boca e para que o brilho seja impecável”. Ao mapear as referências da poeta, ele enumera o próprio Drummond, Manoel de Barros e as poetas grapiúnas Rita Santana e Iolanda Costa. E estabelece uma relação ainda mais próxima com Cecília Meireles, cujo poema Leveza é comparado com Água, de Martha.

Já a autora se coloca entre poetas que não estabelecem limites precisos entre vida e arte, como no poema V, um dos mais belos do livro graças a uma imagem de grande impacto extraída de prosaicas memórias do cotidiano: “De repente, eu me lembro: / Valdelice colocando o dedo / dentro da galinha / para saber se tinha ovo.”


Esse uso do prosaísmo aliado a uma recorrência de cenas do cotidiano em muitos versos lembra também a poesia de Adélia Prado. É o que acontece no poema VI, que descreve, com estudada displicência, a chegada da “magrinha lavadeira / com seu cheiro bom de sabão”, enquanto a narradora, com sua “letra tímida”, “enfileirava o rol de roupas”. 

Tirando poesia de quase nada, “A chuva de Maria” está longe, entretanto, de ser destinado a moças bem comportadas. Pelo contrário, pelos 77 poemas do livro permeiam versos pungentes que exprimem uma sensualidade sutil mas plena. E, em contraponto, um jeito quase inocente de lidar com a transgressão e o desamparo.

“Fevereiro arrepia / o bico dos meus seios / Abocanha meus sonhos”, dizem os versos do poema XII. Já o poema “O afogado mais formoso do mundo” é um elo entre pulsões contraditórias ao trazer, em uma tonalidade mítica, palavras de mulher para o seu amado resgatado do mar cujo rosto traz “matos de sargaço / e os filamentos de medusa”. Mas talvez a melhor expressão dessa fina chuva de poesia de Martha esteja nesses versos despretensiosos mas contundentes: “Amanhã faço tudo direito / hoje vou dormir com os pés sujos”.




 Blog da autora Martha Galrão:
mariamuadie.blogspot.com
Foto: Haroldo Abrantes


2 comentários:

  1. Duas poetas com letras graúdas. Viva a poesia!

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  2. É isso mesmo, Graça! Obrigada pela visita e pela apreciação das escritoras. Beijos, minha querida!

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