quinta-feira, 1 de março de 2012

A Poesia de Martha Galrão













Quando nasceu, o médico disse:
nasceu uma miss.
Com sorte, contrariou a profecia
mas nasceu mulher, isso se via.
E contra fatos há argumentos
'menina bonita da perna grossa
vestido curto papai não gosta'.

Foram muitos os ensinamentos

sentar de pernas fechadas
não ser muito justa a saia
não brincar de ousadia
fechar a porta, Maria,
que o boi já vinha.

A avó lhe pedia

em cartões cheios de anjos
pra ser sempre uma boa menina.

Nem sempre ela podia.













Não é só por minha culpa
que meus olham sempre encharcam,
bebo em minha alma
o gosto do mar.

Minha mãe e minhas tias
a mim confiaram o legado
de carregar no rosto
águas ancestrais.

Contaram-me que minha avó
inundou uma xícara de lágrimas
para banhar os olhos cegos
de seu filho recém-nascido

como mandou Nossa Senhora
também mãe, também Maria,
em sonho abençoado.

O menino chorou, comovido,
quando as águas salgadas de sua mãe
encharcaram seus olhos,

porém continuou cego
e em pouco tempo morreu,
a despeito da fé.

Minha avó até hoje chora
e apara suas lágrimas em xícaras
para molhar a minha voz,
de minha mãe e minhas tias.






De moderna não tenho nada.
Nem quero ter.
Quero ter é tempo
quando menstruar
esperar o sangue correr
formar uma poça
fazer desenhos
e escrever promessas de mulher.





Escrevo nomes
como quem passa batom
e pinta de vermelho
a boca

talvez porque sofra

desse destino
de me balançar
em rede tão fina.

Escolho pernas

cruzo e descruzo palavras
prolongo sílabas e olhares

E porque quero dançar

procuro poesia
no céu da sua boca.

As palavras

doidas pra tecer mistérios

confundo lábios e letras.





Senhora das terras sangrentas de marte
amolo no esmeril a faca cega da paixão
o que amorteço queda em mim
feito chuva fina.

Quem eu sou e quem eu era

cabem no mesmo espelho
no mesmo rosto
no mesmo peito.

Mas não me reconheço

some a memória de mim
bicho escroto me devora
não entendo mais agora.

Cato meus pedaços

me colo com rio
terra, lama, mangue
quero a pele molhada (d’água)
o cabelo de terra, folha, graveto
quero ser árvore.

Minha boca é santa

pela boca tanta
loucura, doçura, sofreguidão
não minto e não digo a verdade
me gasto muito para viver
gasto muito papel para escrever.

Amanhã faço tudo direito

hoje vou dormir com os pés sujos.






 Cigarras

Cigarras são palavras femininas

mas é no abdome do macho
que os timbais implodem.

O canto estridente masculino

convida as fêmeas para a morte.
A lamúria das cigarras
é só dos machos.
Será remorso?

O grito cortante

lamenta as ninfas que descem
e se enfiam, e se escondem e se enterram
para em silêncio sugar
a seiva das raízes.

As cigarras ignoram suas asas

grandes, transparentes e bordadas,
agarram-se aos troncos e galhos
para espalhar em uníssono
seu canto doloroso e amargo.

Ao entardecer,

hora mais triste do dia,
os machos choram
até rebentar minhas costas.

Sob o canto lancinante

das cigarras
eu e as lobas uivamos
dolorosas.






Foto de Martha Galrão: Haroldo Abrantes.
Foto da flor: Rita Santana

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