quarta-feira, 13 de março de 2013


 
 
 
 
 

 
 
 
valdelice Pinheiro

 

 
 
 
 

A Voz de uma mulher grapiuna – valdelice Pinheiro




 
Maria de Lourdes Netto Simões

 

 
 
 
 
 
Em 2002, publiquei a Expressão Poética de Valdelice Pinheiro,  resultado da pesquisa  realizada no âmbito da orientação de iniciação científica na Universidade Estadual de Santa Cruz. O estudo ocupou-se do acervo inédito de Val, como carinhosamente a chamávamos.  A sua Voz nos foi revelada através de  poemas, crônicas, textos filosóficos, desenhos.  Foi um trabalho extremamente prazeroso e necessário; forma de dar maior visibilidade  à expressão daquela mulher grapiúna, nascida no chão do cacau.
Aqui, como um convite,  trago uma pequena mostra da sua expressão poética,  publicada pela EDITUS. 



                       
                                                                      
                                                                

Não há tempo para o poema e o poeta dura

e um dia morre no corpo de sua carne, para ser apenas o instante,

 maior que o tempo, no corpo de seu verso. (p. 30)



Professora e filósofa, Valdelice Pinheiro afirmava não querer simplesmente fazer poesia, mas ser poeta no gesto diário de viver.

Ninguém me mande deixar nada, nem me obrigue às construções convencionais – não quero fazer parte do passado. Por isso escrevo. A poesia não fica, a poesia é . Nenhum poeta fica no que escreve, porque todo poeta é o que escreve. (p.16)

 

Nascida em Itabuna (Bahia), tendo vivido muito ligada ao campo e às roças de cacau, a sua poesia é perpassada por essas vivências. 

Eu vim

de noites úmidas,

quando as sementes

fecundavam

o corpo virgem

da mata.

Eu vim

da branca paisagem

de pequenas flores

germinando ouro

no ventre

dos cacauais.

E acordei na manhã

dos deuses,

no mundo

do chocolate. (p.65)


 
 Eminentemente filosófica desde o seu processo de enunciação até a concretude da sua formulação,  muitas vezes antecede o processo de produção uma  reflexão filosófica.  A presença de Deus na sua obra não se faz por crença religiosa, mas por uma postura filosófica e de fé; assim,  está na base do seu fazer poético.

Nesse sentido, textos filosóficos são verdadeiras matrizes de poemas  ou de prosas poéticas:

No começo não era o caos, o nada, mas a Unidade, a Perfeição, a ordem absoluta no Todo, no Em Si (primordial), eterno. 

A Perfeição absoluta explode. E a explosão é do espírito, da consciência, para criar-se a si mesma.

Deus, portanto, essa Existência Anterior, não criou do nada, mas CRIA de si mesmo, explodido. Criar é explodir-se no Ser. (p. 132)

 


Filtradas pela palavra poética,  observações vivenciadas são universalizadas em temática reflexiva,  recorrente às  questões relacionadas a valorização da natureza, desigualdade social, liberdade, simplicidade do existir, amor universal, necessidade da igualdade entre os homens.


Os vagalumes desta noite

iluminam minha noite

e me emprestam

sua luz e suas asas.

Então, feliz,

a estrada clareada,

eu vou te ver. (p.98)

 

O repertório que utiliza denuncia a sua objeção ao mando, às desigualdades sociais próprios do contexto  grapiúna, da conquista das terras do cacau, do desbravar das matas, do mando dos coronéis, do poder do mais forte.

                                                                 (p.94)


  
 
 
 
 
 
 
Termos fortes e duros não fazem parte do seu  repertório,  pois "é preciso vencer o pudor da palavra, o pudor da verdade como poesia exata". Aliás, neste sentido Valdelice diz ter o lirismo covarde dos burgueses: “revolucionária sentada, fumando tranquilamente [...] cigarro multinacional, comendo um frango defumado também multinacional [...] quer a linguagem desejando a Paz, a Justiça, a igualdade dos homens, mas  [...] tremendo de medo daquele que virá com fuzil na mão, buscar [...] a prestação de contas, marginal ou patriota!”

 

Entre a inocência

dos dedos do menino

e o revólver

na mão do assassino,

há sempre um espaço

de nada,

um trágico destino.

Nem escola,

nem casa,

nem terra,

nem pão.

Quando a inocência

dos dedos do menino

se quebra

na mão engatilhada

do assassino,

perde-se a paz,

porque um homem escapou

de seu menino.  (p.77)

 

 

A sua poesia é também expressão da sua esquizofrenia assumida. Admite isso,  entendendo-a como uma viagem. Nos processos de elaboração mental,  considera, ainda, as respostas do corpo aos reclamos da mente como somatização: “Tomar no corpo as porradas da mente...[...] O homem é um animal que se inventa e, inventando, se desconhece” (p. 145). Para Val, escrever é libertar-se.

 

Escritos de auto-interpretação são explicativos do seu processo poético e podem ser tomados como uma proposta de  teoria da poesia. O texto nasce do silêncio, diz a poetisa, de uma voz interior impulsionadora. Essa Voz (com maiúscula), diz ela, não “a simples voz, um som emitido pela competência do aparelho fonador, mas a Voz, a VOZ, aquilo que sem dúvida não me antecipa, mas é certamente o que me diz. A Voz... Esse silêncio que chega aflito, precisando do grito, tem que inventar o som...” (p. 136). 

 

O processo de surgimento do poema passa pela fase do que chama de “mundo das idéias”, fase essa expressada através de desenhos.  São retas, curvas, espirais que dão surgimento a inesperadas formas e em seguida ao poema.  Nesse instante, “a voz  tira a lógica, o juízo, desregula o comportamento do vocabulário” (id).  Assim nasce  o poema:

Se a carambola

tivesse dedos

tocaria Mozart.

Certamente (p. 91)

O processo criador (termo que prefere a produtor) muito tem de arrebatador e inexplicável. É fruto da VOZ que “no poema ou no gesto, cria o ‘milagre’ humano... A palavra é apenas via, instrumento, acidente...”, quando o deslizar do lápis sobre o papel
 
                                                                                                                       (p.116)
faz o desenho ser poema.
 
 
 
Assim, poesia e desenhos (rabiscos) expressam a sua forma de comunicar. Compondo um processo artístico que ultrapassa a palavra para uma comunicabilidade visual; a sua poesia brota dos rabiscos.  Dessa forma, arte pictórica e arte poética somam-se numa expressão que fala por várias linguagens. Poesia de versos curtos, tituladas ou não; rabiscos tracejados ou definidos, sempre em grafite, fazem o seu texto leve, visual, rápido, múltiplo. Fazem a sua poesia comunicativa e bela. A revisitação filosófica sobre temas que transcendem fronteiras faz  a sua Voz profunda, crítica   e questionadora. Universal.

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