valdelice Pinheiro
A Voz de uma mulher grapiuna –
valdelice Pinheiro
Maria de Lourdes Netto
Simões
Em 2002, publiquei a Expressão Poética de Valdelice Pinheiro, resultado da pesquisa realizada no âmbito da orientação de
iniciação científica na Universidade Estadual de Santa Cruz. O estudo ocupou-se
do acervo inédito de Val, como carinhosamente a chamávamos. A sua Voz nos foi revelada através de poemas, crônicas, textos filosóficos,
desenhos. Foi um trabalho extremamente
prazeroso e necessário; forma de dar maior visibilidade à expressão daquela mulher grapiúna, nascida
no chão do cacau.
Aqui, como um convite, trago uma pequena mostra da sua expressão
poética, publicada pela EDITUS.
Não há tempo para o poema e o poeta dura
e um dia morre no corpo de sua carne, para ser apenas o instante,
maior que o tempo, no corpo de seu verso. (p. 30)
Professora e filósofa, Valdelice
Pinheiro afirmava não querer simplesmente fazer poesia, mas ser poeta no gesto
diário de viver.
Ninguém me mande deixar nada, nem
me obrigue às construções convencionais – não quero fazer parte do passado. Por
isso escrevo. A poesia não fica, a poesia é . Nenhum poeta fica no que escreve,
porque todo poeta é o que escreve. (p.16)
Nascida em Itabuna (Bahia), tendo
vivido muito ligada ao campo e às roças de cacau, a sua poesia é perpassada por
essas vivências.
Eu vim
de noites úmidas,
quando as sementes
fecundavam
o corpo virgem
da mata.
Eu vim
da branca paisagem
de pequenas flores
germinando ouro
no ventre
dos cacauais.
E acordei na manhã
dos deuses,
no mundo
do chocolate. (p.65)
Eminentemente filosófica desde o
seu processo de enunciação até a concretude da sua formulação, muitas vezes antecede o processo de produção
uma reflexão filosófica. A presença de Deus na sua obra não se faz por
crença religiosa, mas por uma postura filosófica e de fé; assim, está na base do seu fazer poético.
Nesse sentido, textos filosóficos
são verdadeiras matrizes de poemas ou de
prosas poéticas:
No começo não era o caos, o nada, mas a Unidade, a Perfeição, a ordem
absoluta no Todo, no Em Si (primordial), eterno.
A Perfeição absoluta explode. E a explosão é do espírito, da
consciência, para criar-se a si mesma.
Deus, portanto, essa Existência Anterior, não criou do nada, mas CRIA
de si mesmo, explodido. Criar é explodir-se no Ser. (p. 132)
Filtradas pela palavra poética, observações vivenciadas são universalizadas em temática reflexiva, recorrente às questões relacionadas a valorização da natureza, desigualdade social, liberdade, simplicidade do existir, amor universal, necessidade da igualdade entre os homens.
Os vagalumes desta noite
iluminam minha noite
e me emprestam
sua luz e suas asas.
Então, feliz,
a estrada clareada,
eu vou te ver. (p.98)
O repertório que utiliza denuncia
a sua objeção ao mando, às desigualdades sociais próprios do contexto grapiúna, da conquista das terras do cacau,
do desbravar das matas, do mando dos coronéis, do poder do mais forte.
(p.94)
Termos fortes e duros não fazem
parte do seu repertório, pois "é preciso vencer o pudor da
palavra, o pudor da verdade como poesia exata". Aliás, neste sentido
Valdelice diz ter o lirismo covarde dos burgueses: “revolucionária sentada,
fumando tranquilamente [...] cigarro multinacional, comendo um frango defumado
também multinacional [...] quer a linguagem desejando a Paz, a Justiça, a
igualdade dos homens, mas [...] tremendo
de medo daquele que virá com fuzil na mão, buscar [...] a prestação de contas,
marginal ou patriota!”
Entre
a inocência
dos dedos do menino
e o revólver
na mão do assassino,
há sempre um espaço
de nada,
um trágico destino.
Nem escola,
nem casa,
nem terra,
nem pão.
Quando a inocência
dos dedos do menino
se quebra
na mão engatilhada
do assassino,
perde-se a paz,
porque um homem escapou
de seu menino.
(p.77)
A sua poesia é também expressão
da sua esquizofrenia assumida. Admite isso,
entendendo-a como uma viagem. Nos processos de elaboração mental, considera, ainda, as respostas do corpo aos reclamos
da mente como somatização: “Tomar no corpo as porradas da mente...[...] O homem
é um animal que se inventa e, inventando, se desconhece” (p. 145). Para Val,
escrever é libertar-se.
Escritos de auto-interpretação
são explicativos do seu processo poético e podem ser tomados como uma proposta
de teoria da poesia. O texto nasce do
silêncio, diz a poetisa, de uma voz interior impulsionadora. Essa Voz (com
maiúscula), diz ela, não “a simples voz, um som emitido pela competência do
aparelho fonador, mas a Voz, a VOZ, aquilo que sem dúvida não me antecipa, mas
é certamente o que me diz. A Voz... Esse silêncio que chega aflito, precisando
do grito, tem que inventar o som...” (p. 136).
O processo de surgimento do poema
passa pela fase do que chama de “mundo das idéias”, fase essa expressada
através de desenhos. São retas, curvas,
espirais que dão surgimento a inesperadas formas e em seguida ao poema. Nesse instante, “a voz tira a lógica, o juízo, desregula o
comportamento do vocabulário” (id).
Assim nasce o poema:
Se a carambola
tivesse dedos
tocaria Mozart.
Certamente (p. 91)
O processo criador (termo que prefere a produtor)
muito tem de arrebatador e inexplicável. É fruto da VOZ que “no poema ou no
gesto, cria o ‘milagre’ humano... A palavra é apenas via, instrumento,
acidente...”, quando o deslizar do lápis sobre o papel
Assim, poesia e desenhos
(rabiscos) expressam a sua forma de comunicar. Compondo um processo artístico
que ultrapassa a palavra para uma comunicabilidade visual; a sua poesia brota
dos rabiscos. Dessa forma, arte
pictórica e arte poética somam-se numa expressão que fala por várias
linguagens. Poesia de versos curtos, tituladas ou não; rabiscos tracejados ou
definidos, sempre em grafite, fazem o seu texto leve, visual, rápido, múltiplo.
Fazem a sua poesia comunicativa e bela. A revisitação filosófica sobre temas
que transcendem fronteiras faz a sua Voz
profunda, crítica e questionadora.
Universal.
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