domingo, 10 de março de 2013



GILKA BANDEIRA




pequenas viagens nos aromas


da
 
noite


 

Pelas janelas abertas a noite entra. Uma noite jasmineira de lua cheia, com alvas velas pandas passando no céu, de longe tangidas pela brisa do mar. Um sutil chamamento se espalha no ar. Não basta estar das janelas a mirar. Impossível ficar embaixo de algum teto. Então ela caminha para dentro da noite. Segue no entorno da lagoa a passear.

Vai pela via entre a lagoa e o mar. Mas, mar escondido na ramaria das chácaras. Ramarias que reluzindo ao luar, derramam sombras moventes aqui e ali. Em sossego vai escutando o silêncio, concerto para sapos, grilos e marulhos, vai ao íntimo ermo da bela noite, sorvendo o que há de muito bom em tudo isto.

Em breve faz uma pequena descoberta: esta não é só uma noite jasmineira. Muitas são as fragrâncias que a perfumam. Araçaranas, eucaliptos, pitangueiras, cajueiros e mais certas flores agrestes. Também de terra molhada e do salitre. Embora juntos, os cheiros não se misturam. Cada qual sendo uma “madeleine” de Proust. Cada um por instante perdura no ar, espargindo rostos, falas e lugares. Alguns deles muito, muito preciosos.

Ela tão simplesmente acolhe o que chega. Como a velocidade do tempo mental, infinitamente excede o do físico, até que os passos alcancem novo aroma, se cumpre a visita da sugestão de antes. Inda assim procura prolongar as passadas, delongando a especial degustação.

Sob penetrante cheiro das araçaranas, num fim de tarde que já ficara distante, ela volta andar na vasta vala do rio, que paralelamente seguia a praia, entre as altas dunas confeitadas de matos. Da praia nem da rua podia ser vista. Sozinha explorava o leito sem água. De repente escutou o espanta-boiada. Com alerta dado surgiram os demais. Mais um, mais outro e o bando por inteiro. Com certeza havia ninhos ali por perto, e eles não estavam para brincadeiras. Histericamente gritavam sem parar. Vieram em ameaçantes vôos rasantes, só desviando no derradeiro instante, em consecutivas ofensivas diretas. Sentiu-se dentro do filme de Hitchcock. Apressou o passo em direção das dunas e além de escapar dos enfurecidos pássaros, recebeu o bálsamo das araçaranas, em abundante florescência por ali.

Do episódio outras lembranças do lugar: da janela donde se via navio passar, o sol surgir e a lua cheia nascer, e a violeta lagoa em meio a junqueira, e os casacas-de-couro arrumando o ninho, e a visita sempre pontual dos cardeais, e os almoços e os bate-papos no quiosque, e as ventanias e tantas outras coisinhas, mas tão ardentes e sentidamente caras.

Na intensa emanação dos eucaliptos ela viajou direto pra velha chácara, onde existiam cinco pés destas mirtáceas. Um com mais de trinta metros de altura. Contemplando-o entendia Guimarães Rosa: “Só se sabe do vento no balanço dos ramos extremos do eucalipto." Talvez, sendo grandes sedentos bebedores, não devessem ter sido plantados ali, numa área assim já tão carente de água. Mas não importava se tanto eles perfumavam o quintal, a casa, a vizinhança inteira em qualquer estação, estando com flores ou não, mesmo quando anualmente se descascavam para exibir liso tronco novo. A árvore toda, não só as flores, recendendo pra todos os lados, incensavam tantas idéias, tantos planos, tantos sonhos, tantas tentativas, tanto sentir, tantas emoções.

Tantos e tantas que ela não conseguia eleger alguma em que mergulhar neste reviver. Simplesmente borboleteava, haurindo o quê de mais significativo vigorava de cada qual. Visto a falta de resultados palpáveis e, sobretudo, por não ter perdurado, poderia, numa avaliação precipitada, concluir que tudo fora em vão. Mas ela agora, vagando no tempo, montada nos aromas daquela noite serena, deixara a impulsividade para trás e atingindo o reino das sutilezas, percebia como tudo aquilo a enriquecia, incluso as perdas e frustrações.

Logo emergem os eflúvios das pitangueiras e, ela passa a arrumar o presépio com as casinhas feitas de caixas de fósforo, enquanto a mãe põe galhos de pitangas nos jarros, explicando que no Natal não podia faltar folhas de pitangas na casa, nos vasos e algumas jogadas no chão. E na última noite do ano, as folhas das pitangueiras do Natal, já secas, deveriam ser colocadas junto ao incenso para defumar a casa. Ouvia, noutras manhãs de Natal, vendedores mercando: “olhe as pitangas”. Hoje, com o Natal norte-americanamente mercantilizado, estas singelezas da nossa cultura desapareceram, mas ela, todas as manhãs de 24 de dezembro, sai atrás das pitangueiras para enfeitar a casa e o presépio que continua armando.

Dos presépios ela chega, ainda menina, a um quintal onde se diverte subindo na enorme velha pitangueira. E depois, em passeio com o pai e a mãe, passa num sítio histórico, no qual o cemitério (coisa nunca vista antes) era todo cercado por sebe de pitangueiras aparadas e sem frutos, como as atuais deste caminho noturno. Em compensação se depara com a imensa e dadivosa pitangueira bem posta no meio do terreno da chácara, totalmente esbranquiçada no acúmulo das suas mimosas alvas florezinhas. Ou com a mesma árvore, em outro estado, pontilhada de vermelho dos frutos lustrosos, rodeada por esvoaçantes e bulhentos sanhaços, tiés-sangue e outros famintos e alegres passarinhos. Como de hábito, senta à sombra desta pitangueira e, como de outras feitas, torna a escutar o vento a ditar sabedoria. Então descobre quanta pitangueira existia na sua vida.

Agora, pela via da noite encantada se alastra o aroma resinoso dos cajueiros em fim de safra. E quase de imediato se posta para fotografia num dos tentáculos do espalhado cajueiro-polvo. Tempo de férias, de liberdade exploratória de novas trilhas físicas e metafóricas. Tempo de amorosa promissão e de forças renovadas.

Mas logo é o cheiro de certas flores silvestres que se insinua levando-a a uma fazenda no semi-árido, donde, vista do alto de uma colina, as nuvens, no horizonte em lusco-fusco da tardinha que se ia, eram tal qual o mar. Insólita, mas também bem pressagiada esta sugestão do casamento do mar com o sertão.

Prosseguindo dentro da noite e a receber as sucessivas, às vezes também simultâneas fragrâncias, ela ia peregrinando por entre as lembranças e sensações. Descobre que nem sempre a saudade é lacuna do perdido, vez por outra, é também recheio do amealhado ao longo da existência. E assim pensando ela dá graças: Bem aventurada força do pensamento! Nele desaparecem as amarras espaços-temporais, dando lugar a infinitude. E ela vai, a noite avança.

2 comentários:

  1. Um abraço, Gilka, seu texto é uma leitura deliciosa e perfumada! Uma observação no ´parágrafo final li e reli, verdadeiro e profundo. "Nem sempre a saudade é uma lacuna do perdido, vez por outra é também recheio do amealhado ao longo da existência." Uma observação nascida da maturidade e expressa com muita poesia. Parabéns. Um beijão. Gláucia Lemos

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  2. Obrigada Gláucia. Como disse a Rita, é muito bom saber que nossas sensações ressoam em alguém, é comunhão de almas. A sua percepção também deve resultar da vivência existencial e da sensibilidade. Abraço forte.
    Gilka

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