Quando o amor
vai à forra
Há uma
diferença sutil entre o poeta que milita e aquele que devaneia com a poesia. Não
que uma perspectiva de expressão possa anular a outra. Muitas vezes a militância
e o devaneio caminham juntos. Em outras ocasiões, o devaneio vira militância. Entretanto,
desfeito o jogo de palavras, fica claro quando o autor abraça o tema a ponto de
tornar-se patente o seu engajamento, até mesmo nas entrelinhas do poema. Tal
impressão me saltou aos olhos ao contemplar Alforrias, o mais recente livro de poesia da
atriz e escritora Rita Santana.
Enquanto as
páginas nos cantam loas de paixão e desejo, a poeta não hesita em cavar fundo
o papel com uma certeza signatária: é um livro de amor em camadas. Isso porque o
tema universal agrega inúmeros estratos que a autora vai
repartindo em temas transversais. Os títulos dos poemas servem de trampolim para
uma escrita forte, pejada de saudades, tristezas, dores, ciúmes, ódios, idílios,
prazeres, todos esses sentimentos que costumam borbulhar no tubo de ensaio de
quem ama.
Rita Santana
teve o cuidado de escolher palavra com várias células históricas para intitular
o seu livro. Alforrias é vocábulo herdado pela Língua
Portuguesa a partir dos dialetos moçárabes, quando o latim vulgar que originou a
língua materna andou enriquecendo nas histórias de luta da invasão da Península
Ibérica pelos árabes, no início do Século VIII. Ao aportar no Brasil, a palavra
não apenas traz embutida em sua estrutura uma relação de servo e senhor, mas
também ganha um ar de desaforo e resistência em resposta à hipocrisia do regime
escravocrata – forrar, ir à forra, dar o troco, responder à altura,
impor-se.
E é isso mesmo que Rita faz ao
apresentar-nos um livro com vários extras no menu. O melhor deles é a programação visual
cuidadosa de George Pellegrini, que faz os olhos saltarem o arame farpado das páginas verde-cana e
ferir a carne nas folhas bege-atadura. Vez por outra, os lanhos valem a pena
pelo deleite da garapa que antecede os títulos. Menina, Rita Santana trama no
espaço gráfico uma espécie de fuga no canavial das páginas pares para depois,
mulher, revelar-se nas ímpares. A capa é outra escolha feliz. O autorretrato de
Frida Kahlo em armadura de reconstrução cervical. E ainda crivada de cravos.
Quanta carne viva ainda haverá na sina de ser poeta?
À medida que a fileira de farpas
engrossa, vem a resposta. Rita Santana entra descalça no campo de lavas sem medo
algum de admitir que está na empreitada por amor – “O gosto perverso da
separação ventilou minha boca de mulher que
ama” / “Como aquiescer, sem que me queime?” / “Adejar de banjos e tulipas sobre
nossa cama de incêndios”. O dossel elástico da lascívia é palco do eterno jogo
macho/fêmea, duas civilizações que parecem entender-se bem melhor entre fluidos,
mucos e odores corpóreos – “Como agachar o rabo molhado / Sobre o teu sexo
pontiagudo, / E alado – de ovos exangues?”.
Mas há muito além do ranger de
camas, do coaxar de redes. Poetas não tardam a despertar da sinestesia. E nesse
abrir de olhos é preciso abandonar a gravidez das palavras. Melhor senti-las secas,
extrair-lhes o caroço. Rita Santana abre então as portas do puerpério e passa a
emprestar o léxico à solidão, ao descaminho, em meio ao banzo dos seus degredos
– “Há anos não gozo, por puro desgosto! / Há anos não canto, por desencanto! /
Há anos não vivo, só tenho banzo!”. O gosto pela aliteração sem excessos é
outra marca da escriba. O recurso, que em boa parte dos poetas soa antipático,
aquece o ritmo do texto, como em Diário da Separação: “Cada
vez mais disposto a cobrir de velários meus velórios matutinos”; Embate de Víboras: “Morde a
maçã e diz malsã” ou em Tardo
Amor: “Eu, maldizida, malfalada / Maldizente de almas fadadas/ Ao
infinito”.
Justamente em Tardo Amor, último poema de Alforrias, agrega-se mais uma
alegoria gráfica. Na página 75, após sorver as últimas palavras, o leitor se
depara com um ícone de liberdade e esperança: um passarinho posa no arame
farpado. É quando Rita Santana mostra que, ao labutar com palavras, vem
conseguindo abrir as gaiolas dos seus quilombos. Na serenidade da paisagem, a
música do grande Elomar até que cairia bem num xodó de rede: “Apois pro cantador
e violeiro / Só há três coisas nesse mundo vão / Amor, viola, alforria e nunca
dinheiro / Viola, alforria, amor / Dinheiro não”.
Marcos Navarro
Jornalista
( Texto publicado no jornal A Tarde 24/09/2012.)
Como adquirir Alforrias:
Livraria Cultura
EDITUS - Editora da UESC
De fato, a poesia de Rita salta aos olhos e invade nosso coração e nossa mente! É poeta, desde sempre, e deve ser divulgada aos quatro cantos, de norte a sul, de leste a oeste!
ResponderExcluirTenho sentido muito a tua ausência, Ritoca. Bem que poderias nos deixar algumas de tuas pérolas por aqui, para nos ajudar a refletir melhor sobre a nossa história. Nem que fosse de vez em quando :)
beijosss
O tempo da escrita me foi ururpado pelas 40 horas em sala de aula, Cirandeira! É difícil até manter o blog. Mas sinto saudades suas, do seu blog e do mundo da blogosfera (KKKK). Muitas saudades de passear pelas barcaças também, pois é um exercício bacana, produtivo, interativo. Conheci você por aqui: olha o tesouro!
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