quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Quando o amor vai à forra


 
 
 
 
 
 
 
Quando o amor vai à forra



Há uma diferença sutil entre o poeta que milita e aquele que devaneia com a poesia. Não que uma perspectiva de expressão possa anular a outra. Muitas vezes a militância e o devaneio caminham juntos. Em outras ocasiões, o devaneio vira militância. Entretanto, desfeito o jogo de palavras, fica claro quando o autor abraça o tema a ponto de tornar-se patente o seu engajamento, até mesmo nas entrelinhas do poema. Tal impressão me saltou aos olhos ao contemplar Alforrias, o mais recente livro de poesia da atriz e escritora Rita Santana.



Enquanto as páginas nos cantam loas de paixão e desejo, a poeta não hesita em cavar fundo o papel com uma certeza signatária: é um livro de amor em camadas. Isso porque o tema universal agrega inúmeros estratos que a autora vai repartindo em temas transversais. Os títulos dos poemas servem de trampolim para uma escrita forte, pejada de saudades, tristezas, dores, ciúmes, ódios, idílios, prazeres, todos esses sentimentos que costumam borbulhar no tubo de ensaio de quem ama.



Rita Santana teve o cuidado de escolher palavra com várias células históricas para intitular o seu livro. Alforrias é vocábulo herdado pela Língua Portuguesa a partir dos dialetos moçárabes, quando o latim vulgar que originou a língua materna andou enriquecendo nas histórias de luta da invasão da Península Ibérica pelos árabes, no início do Século VIII. Ao aportar no Brasil, a palavra não apenas traz embutida em sua estrutura uma relação de servo e senhor, mas também ganha um ar de desaforo e resistência em resposta à hipocrisia do regime escravocrata – forrar, ir à forra, dar o troco, responder à altura, impor-se.



E é isso mesmo que Rita faz ao apresentar-nos um livro com vários extras no menu. O melhor deles é a programação visual cuidadosa de George Pellegrini, que faz os olhos saltarem o arame farpado das páginas verde-cana e ferir a carne nas folhas bege-atadura. Vez por outra, os lanhos valem a pena pelo deleite da garapa que antecede os títulos. Menina, Rita Santana trama no espaço gráfico uma espécie de fuga no canavial das páginas pares para depois, mulher, revelar-se nas ímpares. A capa é outra escolha feliz. O autorretrato de Frida Kahlo em armadura de reconstrução cervical. E ainda crivada de cravos. Quanta carne viva ainda haverá na sina de ser poeta?



À medida que a fileira de farpas engrossa, vem a resposta. Rita Santana entra descalça no campo de lavas sem medo algum de admitir que está na empreitada por amor – “O gosto perverso da separação ventilou minha boca de mulher que ama” / “Como aquiescer, sem que me queime?” / “Adejar de banjos e tulipas sobre nossa cama de incêndios”. O dossel elástico da lascívia é palco do eterno jogo macho/fêmea, duas civilizações que parecem entender-se bem melhor entre fluidos, mucos e odores corpóreos – “Como agachar o rabo molhado / Sobre o teu sexo pontiagudo, / E alado – de ovos exangues?”.



Mas há muito além do ranger de camas, do coaxar de redes. Poetas não tardam a despertar da sinestesia. E nesse abrir de olhos é preciso abandonar a gravidez das palavras. Melhor senti-las secas, extrair-lhes o caroço. Rita Santana abre então as portas do puerpério e passa a emprestar o léxico à solidão, ao descaminho, em meio ao banzo dos seus degredos – “Há anos não gozo, por puro desgosto! / Há anos não canto, por desencanto! / Há anos não vivo, só tenho banzo!”. O gosto pela aliteração sem excessos é outra marca da escriba. O recurso, que em boa parte dos poetas soa antipático, aquece o ritmo do texto, como em Diário da Separação: “Cada vez mais disposto a cobrir de velários meus velórios matutinos”; Embate de Víboras: “Morde a maçã e diz malsã” ou em Tardo Amor: “Eu, maldizida, malfalada / Maldizente de almas fadadas/ Ao infinito”.



Justamente em Tardo Amor, último poema de Alforrias, agrega-se mais uma alegoria gráfica. Na página 75, após sorver as últimas palavras, o leitor se depara com um ícone de liberdade e esperança: um passarinho posa no arame farpado. É quando Rita Santana mostra que, ao labutar com palavras, vem conseguindo abrir as gaiolas dos seus quilombos. Na serenidade da paisagem, a música do grande Elomar até que cairia bem num xodó de rede: “Apois pro cantador e violeiro / Só há três coisas nesse mundo vão / Amor, viola, alforria e nunca dinheiro / Viola, alforria, amor / Dinheiro não”.





Marcos Navarro
Jornalista

( Texto publicado no jornal A Tarde 24/09/2012.)
 
Como adquirir Alforrias:
 
Livraria Cultura
 
EDITUS - Editora da UESC
 
 
 

2 comentários:

  1. De fato, a poesia de Rita salta aos olhos e invade nosso coração e nossa mente! É poeta, desde sempre, e deve ser divulgada aos quatro cantos, de norte a sul, de leste a oeste!

    Tenho sentido muito a tua ausência, Ritoca. Bem que poderias nos deixar algumas de tuas pérolas por aqui, para nos ajudar a refletir melhor sobre a nossa história. Nem que fosse de vez em quando :)

    beijosss

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  2. O tempo da escrita me foi ururpado pelas 40 horas em sala de aula, Cirandeira! É difícil até manter o blog. Mas sinto saudades suas, do seu blog e do mundo da blogosfera (KKKK). Muitas saudades de passear pelas barcaças também, pois é um exercício bacana, produtivo, interativo. Conheci você por aqui: olha o tesouro!

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