quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Daniela Galdino: Inúmera!

 








 


 





INÚMERA


Eu tenho a síndrome de Tim Maia.
Eu tenho as varizes de Clara Nunes.
Eu tenho os vícios de Piaf.
Eu tenho a orelha de Van Gogh.
Eu tenho a perna que falta ao Saci.

Eu tenho o olfato de Freud.
Eu tenho o cansaço de Amélia.
Eu tenho o peso de Maria.
Eu tenho as dermatoses de Macabéa.
Eu tenho a cusparada de Sofará.

Eu sou a linha tênue que une os xipófagos.
Eu sou uma interrogação vagando com pressa.
Eu sou um insulto atirado à queima roupa.

Eu tenho atalhos ainda não percorridos.
Eu tenho palavras desgastadas e nulas.
Eu tenho uma voz penífera e cortante.

Eu confesso: sou intrusa, sou inúbil, sou inúmera.


(Daniela Galdino)






MULHER ABJETA


Não sei desenhar
não sei fazer conta
só entendo de assustar palavras.

Puxo o verbo pelo rabo
finco dente no dorso.

Quero des-edificar lares
provocar divórcio 
entre significante e significado.

Aí será o oco da linguagem varrido pelo avesso...

Encosto a boca na orelha dos vocábulos
e sussurro:
“Deus é a nossa criação necessária”.
Eles habitam pântanos de pânicos.
Estão prontos para representar meus terrores.

Eu não espero pelo dia
em que o meu nome flutuará
nas páginas de uma hagiografia.

Não sei qual evangelho rege
as impurezas da minha arte.

Eu transbordo excrescências,
dúvidas,
 luminosidades.
E... só entendo de assustar palavras.

(Daniela Galdino)




SAUDADE AMANHECIDA

meus pés contêm mapas
distorcidos por cartógrafos loucos.

e esses pés tocam sem cuidado
a profusão de fios... rastros... fluxos...

eu esqueço os ares de moça
ignoro compêndios
transito por rotas imprecisas:

língua percorre lágrimas
boca engole axilas
dedos iluminam côncavos
buceta grita espumas

corpo bambeia na cadência
da memória indistinta:
seus jorros trêmulos
em meus pontos cardeais.

(Daniela Galdino)





ALVORECIDA


Acordei com um sol enorme
dentro de mim

abrasaram-se os órgãos vitais
raios trafegaram minhas veias

borbulharam pensamentos de lama
nos lençóis freáticos da memória

o sol tomou conta de tudo
expandiu felonias esquecidas

ergueu-se um centenário baobá
no terreiro inabitado de mim

o frêmito deste nascimento
alimentou espetáculo frondoso:

sombra nas costas do dia
vertigem na borboleta.


(Daniela Galdino)





CONSELHO INFANTIL

Dandara


Medi o rio que divide a cidade do Mim
Mirei o espectro de peixes isolados
Aspirei o miasma de sonhos esquecidos
Segui o transitar das baronesas inférteis
Multipliquei-me em silêncio.
Ensaiei a elegância das garças.
As tuas palavras despertaram-me:
“eu sou maior por dentro”.

(Daniela Galdino)


Daniela Galdino (itabunense, poeta, professora da UNEB e Doutoranda pelo CEAO/UFBA) re-começa a vida em 2012 trazendo ao público o meu segundo livro de poemas: Inúmera. Trata-se de uma obra em movimento, feita em transe e no trânsito dos dias, nos deslocamentos do corpo que percorre paisagens alheias e familiares... O seu desafio da/na escrita é provocar a linguagem e construir imagens de maneira a gerar uma obra que não seja um testemunho pessoal... o  seu desejo, com Inúmera, é construir uma ciranda com as/os leitoras/es (que podem ou não se reconhecer no escrito, mas que serão provocadas/os de alguma forma).
Com ilustrações de Daniel Prudente (baiano de Itabuna, artista visual formado pela UFMG), Inúmera é uma obra que nasce junto com a editora que a publica: a Mondrongo (editora do Teatro Popular de Ilhéus). Essa é uma opção consciente: movimentar a cena artística sulbaiana e, ao mesmo tempo, projetar as nossas produções em outros espaços. Daí o propósito de construir uma ampla agenda de lançamento de Inúmera, começando pelo sul da Bahia (Ilhéus e Itabuna)  e depois percorrendo outras cidades e capitais.
Inúmera, para captar as nuances femininas, está organizado em cinco partes: “Eu sou uma interrogação vagando com pressa”, “É passeio abissal”, “Nos absurdos de uma colheita infeliz”, “Toma o fôlego aos ventos esparsos”, “Eu sou maior por dentro”. A palavra-chave do livro é provocação e, para tanto, a autora passeia por abismos, desejos, envereda pela auto-representação, pelos atalhos corporais. Da insurgência ao erótico, das singelezas ados desencantos e reencantos, "Inúmera" se move a partir das matérias lancinantes... No livro está o poema “Conselho Infantil”, que foi musicalizado recentemente pela banda Manzuá, integrando o acervo (trilha sonora) do Projeto Memórias do Rio Cachoeira.
Depois de Ilhéus e Itabuna, Inúmera será lançado em Salvador, no dia 3 de fevereiro de 2012. O evento acontecerá no Centro de Estudos dos Povos Afro-Índio-Americanos (CEPAIA)/UNEB. Durante o lançamento haverá um sarau com a participação de: Sapiranga, Vércia Gonçalvez, Gabriel Barros, Daniel Fernandes, Carlos Barros, Zé Liveira (música), Rita Santana, Lorenza Mucida, Daniela Galdino (poesia).
 
 
Data: 03 de fevereiro de 2012
Hora: 17:30
Local: CEPAIA, Rua do Paço, n°4 - Pelourinho Salvador – Bahia.
Contato: (71) 3241-0811 / 0840 / 0787
Valor do livro: R$ 20,00



Sobre Daniela Galdino: natural de Itabuna (BA), Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA), Mestre em Literatura e Diversidade Cultural (UEFS), Graduada em Letras (UESC). Professora de Literatura na UNEB. Organizou os livros “Tessitura Azeviche: diálogo entre as literaturas africanas e a literatura afrobrasileira” (Editus/MEC, Uniafro), “Levando a Raça a Sério” (DP&A, Laboratório de Políticas Públicas da UERJ). Mantém o blog: www.operariadasruinas.blogspot.com




SOBRE “INÚMERA”:

“[...] A poesia dessa autora é uma carta sem selo endereçada à diversidade de leitores. É certo que ser leitor é ser só em companhia de uma multidão de vozes. No compasso das páginas lidas, a releitura é um momento dialógico com a literatura, exige o diálogo com nossa outra idade, aquela de um tempo extemporâneo. Duas solidões exige a leitura do livro Inúmera: a de quem lê, a de quem escreve. Toda obra nasce de um parto solitário, de um pacto solidário, em sintonia com o que nos diz o signo dos inúmeros poemas: “Quero des-edificar lares/provocar divórcio/ entre significante e significado”. De baixo para cima, o livro Inúmera é um pertencimento de mundo, um recado que aposta todas as cartas em uma saga: provocação. Uma experiência una e múltipla, ao mesmo tempo em que o gesto solidário traz as margens para dentro das imagens [...]”.


Tânia Lima
(Poeta Maranhense-Recifense,
Profa. de Literatura da UFRN. Natal – RN, primavera/2011)





“[...] Daniela Galdino chega como um raio que de água gerada na eletricidade dos ares. Sua presença aporta como autora em primeira pessoa. Seus poemas são, antes de qualquer coisa, assunções de sua  persona mais que imponente e ao mesmo tempo flutuante. O verbo flutuar, que em francês – fluctuer – tem uma sonoridade musicalmente agradável, ora aponta, ora desmonta o que a arte de Daniela Galdino traz enquanto essência. Sua personalidade forte faz com que seus vôos sejam como os do avião: obra gigante de aço que paira no ar sob a força propulsora que levanta e equilibra-se por entre os ventos. Desta forma é aérea e forte [...]”.

Carlos Barros
(Cantor, Compositor e Sociólogo.
Salvador – BA, primavera/2011)






“[...] Estas linhas aqui tecidas bem sabem que a poesia de Daniela Galdino não carece de alguém que a defina. Escrita com sangue e no sangue, percorre vários caminhos de veias indagando, vasculhando, encontrando o ser bem maior na carne de cada palavra reinventada. Daí o olhar para o além e o umbigo fincando na terra, brotando sonhos e lirismos enraizados em guerrilhas cotidianas. À  frente da batalha, a mulher, inteira. Menina, amor, mãe, acolhimento com cheiro de agressivo de fêmea plena de sensualidade subversiva. Erotismo vingando séculos de passiva subserviência [...]”.


Daniel Fernandes
(Músico – Rio de Janeiro, primavera /2011)







POEMAS DO LIVRO “INÚMERA”, DE DANIELA GALDINO

GALDINO, Daniela. Inúmera. Ilhéus – BA: Mondrongo, 2011.





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