sábado, 31 de dezembro de 2011

Senhora dos Espaços





 



SENHORA DOS ESPAÇOS
 Rita Santana



Visitei o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira. O motivo principal da minha ida àquele espaço foi o desejo de ver a obra de Mestre Didi, cuja força exerce sobre mim um tremendo fascínio. Mas pude ver muito mais. São três exposições importantes para sabermos mais sobre a identidade brasileira. É olhar o espelho e ver a nossa pele, a nossa gente negra que construiu obras em áreas tão diversas do conhecimento humano. Em tempos onde a ausência, a baixa frequência, a invisibilidade ou o aprisionamento do negro a velhos clichês na mídia, ainda, é uma realidade. A história escravista perpetua-se nas relações cotidianas e a resistência continua incessantemente.

As três exposições têm curadoria de Emanoel Araújo, uma grande personalidade do mundo das artes no Brasil. Desenhista, pintor, escultor, cenógrafo, pintor, curador e museólogo. Emanoel Araújo foi o responsável pela grande reforma espacial e ideológica da Pinacoteca de São Paulo na década de 90, mobilizando um grande público e lançando a Pinacoteca como um dos espaços mais respeitados do País. Emanoel nasceu em Santo Amaro da Purificação em 1940. É um Intelectual inquieto, polêmico.

  São três exposições: Nós: afrodescendentes brasileiros, com fotos de personalidades negras fundamentais para a história e construção cultural do Brasil, como os irmãos André e Antônio Rebouças, Juliano Moreira, João Cândido, Pixinguinha, o próprio Walter Firmo, Grande Otelo. Enfim, um painel de tantos nomes e rostos, muitas vezes desconhecidos, que estão ali para serem vistos, pesquisados, conhecidos, reconhecidos e aprofundados. Numa investigação que caberá somente ao leitor da obra, ao visitante que se depara com aquela constelação de gente negra que construiu o Brasil com o seu trabalho e com o seu intelecto. Tomaremos alguns sustos necessários para desconstruirmos nossa formação sobre a participação do negro na sociedade brasileira. 

Verbos como colaborar, influenciar terão que ser repensados nesse contexto porque não dão conta da intrínseca relação entre a construção histórica do Brasil e a incessante e indelével atuação dos negros nesse processo. A presença do pronome na primeira pessoa do plural sinaliza que não se trata da alteridade, do negro brasileiro visto como o Outro, mas é uma exposição sobre todos nós, tantos de nós, muitos de nós. Portanto, qualquer brasileiro que ame aquelas personalidades, que se identifique com o trabalho, a atuação, a participação dessas pessoas e que tenha o sentimento de pertencimento àquela etnia, se sentirá afrodescendente e se integrará ao nós proposto no título.

 Exposição que homenageia 2011: Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes. É um painel de uma Nação, de um povo inteiro. Como é possível pensar o Brasil sem os nomes que figuram no painel e no cartaz que ganhamos durante a visitação: Olavo Bilac, Mario de Andrade, Castro Alves, Gonçalves Dias, Abdias Nascimento, Ruth Souza, Solano Trindade, Machado de Assis, Carolina de Jesus, Lea Garcia? Quem não tem a marca de Pixinguinha na sua alma? Luiz Gama enfrentando a justiça para libertar mais de 500 homens e mulheres escravizados? Milton Santos sorrindo pra gente e encantando o mundo como grande geógrafo? Quem, sendo brasileiro, não se sente pertencente ao universo dessa criação diaspórica que é o próprio Brasil?

Ao mesmo tempo, o título da exposição é afirmação de quem somos. É também um lugar de afirmação e imposição de que somos nós, os negros, que estamos ali representados, e que estamos em meio a todos eles. A nossa foto parece estar ali, nos sentimos representados, legitimados com uma dignidade e orgulho imensuráveis.

Temos a exposição permanente do Museu com obras de muitos artistas plásticos negros ou que trabalham a identidade negra e os signos associados ao universo afro-brasileiro, como Carybé que traz para a exposição peças africanas do seu acervo pessoal com esculturas magníficas do continente africano. Pierre Verger capta momentos sagrados dos rituais do Candomblé em suas fotos que dizem muito da nossa ancestralidade, da nossa cultura, de nós mesmos. São 260 obras surpreendentes, fascinantes, que nos envolvem no universo da arte, da criação, da magia. Lá estão algumas criações de Rubem Valentim com o seu colorido enigmático, suas formas reconstruídas incessantemente, e a marca de signos que nos remetem também para o território do sagrado:

Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada, com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade; criando seus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim.”

Mestre Didi sempre foi uma paixão! Ao entrar no salão dedicado ao seu trabalho, senti uma perturbação na alma. Sabia que adentrava em um espaço sagrado sem atinar, conscientemente, para o título da exposição. Entrava num altar e pedi licença. Recuei antes de prosseguir, pois sabia que ali estava um território de reverência. Somente indo à Exposição para saber a beleza dessa experiência visual, estético-religiosa. Sua obra afeta outros sentidos, principalmente o elo com a nossa identidade afro-brasileira, a religiosidade íntima e coletiva que une tantos de nós. A poesia da imagem! Um Mestre esse Didi. Muitos mistérios!

Exposição onde o sagrado se encontra com a arte; onde o silêncio impera sobre nós; onde meditar e contemplar se irmanam; onde templo e galeria se fundem. Sensações, muitas sensações! Aliás, pedi licença várias vezes, enquanto fotografava no meu entusiasmo febril. Pedi licença enquanto olhava, enquanto entortava o pescoço para mergulhar nas formas, tentando alcançar a dimensão da escultura, alcançar a imensidão das esculturas lançadas ao espaço, desafiando a gravidade, desafiando espaço e tempo, pois somos arrebatados para tempos imemoriais, tempos de outros tempos. A elegância das peças, que surpreendem pela forma que adquirem e a altura que alcançam como se fossem donas do mundo. Os títulos das obras ajudam a compor esse oráculo: Palma do Mistério do Mato, Cetro ibiri, Serpente com Pássaros, Assentamento onde emergem os poderes ancestrais, Emblema de Nanã, Espírito da Floresta, Senhora dos Espaços, Erè: Divindade Infantil, Eye lawá: Pássaro Ancestral e Grande Mãe, Pássaro de Tempo Imemorial.

O antigo prédio do Tesouro do Estado, em estilo neoclássico, já é um monumento histórico a ser apreciado, da mesma forma o prédio em frente ao Museu que também se destina às suas instalações e atualmente encontra-se em reforma. As instalações elétricas em torno do prédio perturbam a contemplação da sua arquitetura, mas certamente haverá uma futura preocupação com a paisagem externa. 

O contato com a obra de Mestre Didi é um encontro com a nossa história de criação artística profunda. É o contato com um povo ancestral que sempre esteve dentro do universo da representação plástica, literária, lúdica e musical no Brasil. É lembrar que o trabalho artístico dos povos do Continente Africano inspirou e ensinou ao mundo ocidental muito do que foi utilizado no Cubismo de Picasso.

Portanto, o olhar sabe que é obra de arte, pois a agudez do sentimento estético é acionada: estamos diante do Belo, da Beleza. Beleza construída com elementos simbólicos cujo significado muitas vezes só será sabido pelos iniciados do candomblé ou por quem tem o conhecimento religioso necessário para a apreensão mais direta dos significados. Entretanto, os signos dizem, mesmo que não entendamos conscientemente qual a semântica ritualística que engendra aquela obra. Há uma mobilização dos sentidos, do sentimento de religiosidade, irmandade com o Sagrado e a Beleza.

Resolvi findar 2011 com a visita à Exposição e pretendo iniciar o próximo ano indo ao Museu de Arte Moderna da Bahia - Solar do Unhão - para ver a exposição de Rubem Valentim. São duas velhas paixões. Sinto que cumpro um ritual interno de renovar a minha alma, minhas idéias e meu conhecimento. Pretendo levar meus sobrinhos e irmãs porque acredito no poder da imagem, das artes plásticas para a renovação do olhar, do pensamento. Talvez as postagens nas Barcaças sejam o meu desejo de que mais pessoas visitem as duas exposições na crença de que estejamos construindo um mundo melhor.

Internamente, no próximo ano, pretendo estar mais próxima dos meus desejos, das minhas paixões, como ir aos museus, ver as exposições, ouvir mais música, ir aos shows, ler mais livros, escrever mais. Correr atrás desses dois artistas tem esse significado. Dei o primeiro passo! Agora me sinto mais Senhora dos Espaços, mais senhora de mim mesma. Muita força, conhecimento e colorido para todos nós em 2012. 


Exposições no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira
Curadoria: Emanoel Araújo
Período: 16 de Novembro de 2011 a 19 de Fevereiro de 2012
Visitas:  terça a sexta: 10h - 17h 
                   sábado e domingo: 14h - 17h
R. do Tesouro, s/n. Centro Histórico (3321-6722). 
Entrada gratuita.

Foto do painel: Rita Santana




3 comentários:

  1. Ritoquinha querida!, antes de qualquer coisa vim
    desejar-te um 2012 com muita força, muita energia e muito axé! Que renoves cada vez mais
    essa tua incrível capacidade para poetizar tudo o que escreves, és uma pérola raríssima nesse universo blogosférico, podes acreditar, viu?
    Um carinhoso abraço e beijos mil!!!!

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  2. Rita, gosto tanto de quando você fala nestes dentros mais profundos. Seu Didi é mestre Assobá de todos nós: "Assipá elesé borocum can gogo".

    Axé,

    Wesley

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  3. A sua aprovação é muito importante, Wesley. O fazer é solitário, mas tenho me especializado na solidão das minhas escrituras. Ter você é sempre uma grande alegria. Felicidades pra toda a família, meu querido poeta, amigo!

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