domingo, 5 de junho de 2011












TRAMELA
Rita Santana



A chegança era sempre assim: o pé firme abria a porta quase morta de tantos anos sem tinta, a madeira transparecendo de fora pra dentro os movimentos da mulher, onde o fino do vestido liso escorria ossos de uma tristeza surda ou vestígios da antiga tecelagem de carne dura. pelas frestas da porta a tramela imóvel parecia entender que não servia para quase nada, não trancava, não bania, era devassada em noites insólitas de suplício sem súplicas abrindo sendas insuspeitadas numa alma de madeira rústica, rasgando atalhos falsos e falhos nos talhos de suas frinchas sem trincheiras, donde pendiam lascas e lascas sagradas de solidão dissoluta, lascas amargas de sortilégios acrílicos. entredentes a boca exalava hálito carcomido por impenetráveis ruindades preservadas em conserva de azeite doce e ervas daninhas e danadas, hálito pálido de morbidez crônica de um ócio milenar gerando palavras com cheiro cálido de bélicas investidas vestidas de fome, sobejos de ódios catados nos cantos recônditos dessa vida braba e engolidos em seco perante as paredes da cidade lá fora, ruminados e expelidos em gritos por aqui. aqui eu me sabendo à espera acordada de qualquer hora, sempre eu à espera. à espera de promessas que não vinham nunca, nunquinha, à espera de um homem que - era o grito noturno daquela hora - o grito de todos os gritos passados e os do porvir - gritava - as veias inchadas num verde cortante rasgando a pele na ira do poder, de poder ser grande no volume grave da voz. na conspiração ritual dos gritos idos e dos vindouros, o tempo congelou a cena diante dos meus olhos infusos em remorsos degenerados e maldição perpétua de ser taciturna e vaga. a porta rompida a ferro num coice soberbo de pirataria, também esperava meus passos apressados para fechá-la, ficou à espera me vendo pisar leve e eu sorria um riso frágil de quem desaprende a usar a boca para ser feliz e era para ser feliz que eu sorria, lentamente eu andava sentindo um suspiro fugindo de meu peito aprisionado, abri a gaveta e entre mágoas amareladas pelo tempo e pétalas secas de beleza armazenada retirei um espelho pequeno, cabendo na palma da mão e vi nascer meu sorriso, abrindo caminhos entre rugas de musgos seculares, rugas escorregadias pelo limo das lamúrias, ressumando dúvidas e vendavais, rugas vivas reminiscentes no meu coração colapso, conjurado por deuses infiltrados nas trevas de eras sacras e sombras incestuosas. e ele me olhava seco. estaca fincada na sala vendo a sombra da porta aberta, a mancha negra de mim no chão se indo se indo inundando toda a casa e ele me olhava seco e eu me ia, sondando nele a dor que me comia as pernas bambas que se iam e me levavam à revelia de meus olhos, seco, seco ele me olhava. e ela ia. e eu seco sangrava palavras carpidas no meu silêncio de pedra, de um afeto que eu não dizia e eu morria em mim a cada aborto de carinho negado e eu queria, eu juro queria mas a mão era muda e a boca explodia a confusão inconfessada na cama na cozinha era puro não saber usar o verbo, era tudo não saber e o corpo se enroscava sozinho e o medo de mostrar ser... ser assim dolorido na secura de não saber ser... assim. essa coisa de querer dela o colo nas horas de medo de nada em que eu era menino com medo da vida, de querer com ela e dela a pele para ensopar o que descia de mim em lágrima e euforia de gozo por ela e por mim, e seco eu saía comido pelas ruas de loucas gordas que sorriam do meu medo carrancudo, o mundo me comia inteiro e era medo de ver que eu sentia, e seco eu chegava, e seca ela ia. ela. meu deus. era ela se indo. se indo, ela meu deus. à espera de promessas que não vinham nunca, nunquinha, à espera de não saber ser diante dos meus olhos infusos amarelados pelo tempo pelo limo das lamúrias eu era menino e eu sorria um riso frágil e eu morria em mim. o tempo repetiu a cena diante dos meus olhos cabendo na palma da mão a dor que me comia as pernas bambas de quem desaprende a usar a boca era puro não saber usar o verbo. seca ela ia e ele me olhava seco pelo tempo tempo cunjurado por deuses incestuosos nas horas de medo deuses com medo da vida infusos na palma da mão que me comia de medo diante de quem olhava meus olhos em mim e ele sorria um riso frágil de quem desaprende o tempo puro e eu sorria e eu morria e eu era menino diante de promessas que não vinham das lamúrias da vida eu era menino e diante do verbo a cena congelou o tempo o tempo seco dos deuses o tempo da vida o tempo da dor o tempo do medo o tempo de eu menino o tempo de eu sorria o tempo






 Foto: Chico Carneiro/Ilha de Moçambique/Moçambique.

Um comentário:

  1. Um monólogo desses, habitado por tantas vozes que parecem cochichar entre si, numa busca incessante de comunicar-se com as portas e paredes e chaves que que abrem e fecham um universo de sentimentos contraditórios, prenhes por existir..."a cada aborto de carinho negado...", só me leva a pensar o quanto é rica a força do verbo da poeta que sabe dominá-lo tão bem!

    beijos, Ritoca!!!

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