domingo, 12 de junho de 2011





  





A PARABÓLICA
Rita Santana
 




Cheguei ao local do encontro. Descrever talvez fosse fácil. A estrada até aqui povoada de evasões e tempo de gente que ficou. As flores alaranjadas se estendiam dispersas nas alturas, mas seria mesmo sábado? O nome daquela árvore semeada por toda a estrada... Temia esquecer as palavras. Em pouco a distância abalaria a comunicação cotidiana, as mãos já não diriam em socorro, como sempre disseram, as mãos perdidas perderiam a palavra do gesto. Ainda seria possível esconder a desorganização gradual do pensamento. Talvez o sorriso e o desespero. É, o desespero me salvaria na sua agudez absoluta; a agonia inflamada e ensandecida poderá reter a lucidez que me escapa. O horário vago libertou os meninos pela área de concreto. Teriam percebido realmente minha presença e meu tormento? O encontro anulado e eu esqueci. O dia foi amanhã . E o medo por não saber o nome daquelas árvores, daquelas flores. Mas lá estava eu: pronta.

Volto para casa. Sempre volto para casa. Volto e nunca sei ao certo quem se nutre com a minha ausência perambulando pelos cantos vazios. Volto e sempre digo para Augusto: nunca deixe de beijar as bordas das minhas ancas. Sim, Augusto, bem aí onde só você sabe ir tateando, com a língua entre dedos, a trilha onde se afunda certa a região do repouso do gozo. Não, Augusto, agora sim, um pouco mais, vem cá Augusto, ai... aí; bem aí, Augusto.

No dia seguinte ele era um estranho, um inimigo pronto a trair minha entrega, e eu, uma mulher recém-chegada de outras terras. Mulher distante e muda. As luzes da capital estão próximas demais e eu estou do outro lado, correndo descalça. Os sapatos, deixei-os em casa, não entrarei na escola sem eles. Na rua eu morro de uma vergonha pavorosa pela nudez dos pés. Estou sempre a cair de um abismo, e os meus pés sentem o vazio da vastidão que me aguarda. Pedras porosas vagam na imensidão, e o som é o mesmo: palmas das mãos batendo sobre os ouvidos, barulho de vaguezas.

Era preciso partir, por isso a estrada e o encontro. Abandonar a terra onde nasceu para poder correr sempre mais, sem parar nunca. Água. Beber água para saborear a vida escorrendo pela garganta seca. A parabólica anunciara, na surdina dos lares, que os tempos seriam outros e riscara nas paredes das casas risos de como seriam e seriam os mesmos. A lanterna fora apagada em todos os vilarejos. Só as velas no interior dos templos iluminavam, com as sombras, as calçadas. As gentes corriam silenciosas, curvas, em busca de filas maiores que por toda a sorte se expandiam.

Augusto buscava a mortalidade possível. Por isso Marina e suas entranhas de estranhezas. Infindável descoberta de ossos que se insinuavam urgentes no raso da madeira oculta entre lençóis, espumas, molas, quem dera a palha para apaziguar as tentativas de fuga. Ossos de Marina entranhados quiném lasca fincada na unha, sangrando a dor do lascão. De não ser amado sempre soube e amor não queria, bastava já, e somente as frias penas do seu corpo de flacidez perturbadora e a arrogância desarticulada dos seus silêncios e os cios dos seus ciúmes violentos cavando com as mãos a terra seca do quintal. Mulher amaldiçoada.

Mas, eu estava ficando. Cada vez mais eu estava ficando, ali, com ele. Ainda tenho a estrada, mas os nomes me escapam, estou ficando sem os nomes. E o homem amado que não me vem para salvar-me dessa felicidade absurda, absoluta. Augusto era o gosto da permanência, o medo de não precisar mais das palavras, e tantas já se foram. Daí os encontros com ele que nunca vinha. Mas ele virá, traçando a lápis o código inscrito em areia, condição possível, saberá de mim e em ódio, ainda que seja, me amará na surpresa do seu grafite, com a rudeza da madeira explícita. Chegará antes da primavera, adoecido da distância, com o cheiro não encontrável em outros homens, dirá aquela palavra que não separa nada de ninguém nunca e, por fim, terá meu colo calado, afundando minha alma em reencontro e paz. E nunca será demais a demasia desse amor demasiado.

Eram os desatinos mais sóbrios dos fragmentos de mim que sobraram. A percepção das horas possuía a consistência das coisas que desandam. Estou morrendo, estive sempre a morrer. Mesmo antes de respirar o ar de sua vinda, eu já me sabia morta, mas hei de, mesmo morta, violentar meu túmulo, roubar de lá a vida que me ficou presa, só para ouvir o som da sua chegada.

- É mentira! Tudo é mentira. Estou adoecendo de imagens. O que eu quero não é o ele que não me chega nunca, eu quero é a estrada, é a estrada que eu espero. E se me chega o mancebo dos meus sonhos, cheirando a gaita, eu corro a abandonar seu corpo semelhante ao meu em cor e calma, em busca do que ficou perdido em qualquer abismo, e continuarei perseguindo o que não estiver em minhas mãos.

Não houve tempo para a imitação secular do beijo na penumbra. Das antigas minas, os telhados inconfidentes permaneciam, apesar do passar da história. De lá, um fotógrafo obstinado por velhas telhas era perseguido por ela, metálica, ameaçando os ângulos de um filme que não viria, e se viesse, os sinos calariam os cines santa clara, isabel, brasil. Não mais estariam clareados pela escuridão. Os insones em vigília controlavam os devaneios dos ébrios. Os que se arrastavam nos rochedos em fuga traziam as mãos amputadas e os pés em fundas chagas. E daí? Buscávamos mais, as filas forneciam o suficiente para os saciáveis.

A minha natureza, há muito vinha se distanciando das gentes. Perdiam-se as palavras como pedras caem na estrada e desaparecem. Tudo rodopiava muito longe dos seres rupestres. Tudo ainda era o velho pião de madeira girando na mão do menino demiurgo que brincava distraído de gerundiar a queda das telhas. Me nutro de partos, nascimentos e partidas, de obscuridades de olhar de cão que ama o dono e a casa numa comunicação franzina e obcecada de tristeza e afirmação.

No primeiro dia do ano não chorei, perdi o caminho condutor das lágrimas. A solidão habitual atingiu a maturidade dos anos. Não chorei. Me sinto tranqüila. Que me venha o ano novo com todas as surpresas do porvir ou mesmo a ausência delas. Estarei sempre ali, naquela estrada, testemunhando o aterro progressivo do manguezal. Sempre em fuga. A felicidade sempre me levará àquelas terras de lá, de antes de eu chegar até aqui. Ainda me sinto nua, toda descalça, em vertigem. Ai, essa minha limitação pulmonar diante da vida... às vezes esqueço de respirar e transpiro nos instantes seguintes todo o esquecimento voluntário.

Augusto. Volto para casa. Sempre volto para casa e nunca sei ao certo quem se nutre com a minha ausência perambulando pelos cantos vazios. Volto e sempre digo para Augusto: nunca deixe de beijar as bordas das minhas ancas, sim Augusto, bem aí onde só você sabe ir tateando com a língua, na trilha onde repousa uma asa do meu gozo. Vai Augusto, vai beijando do meu corpo as bocas que hão de beijar seus beijos, a boca Augusto. Beije a minha boca. Em revolta de querer fundir-se, inserir no outro o próprio corpo todo; não em partes, todo. Em singeleza de amor perfeito, delícia de intimezas maduras. Os beijos, meu deus, Augusto, os beijos. A boca. Todos os lábios que se abrem na passagem de seus beijos. Minhas ancas, Augusto, de novo, vem cá.

Augusto ficou ali, me olhando de cócoras em meio à plantação de malmequer que se espalhava pelo quintal sem fundo daquela casa. Suas mãos caladas viam. Eu debrucei sobre aquele olhar a decisão de que partiria. Mais cedo ou mais tarde eu partiria em busca do que estava reservado a mim para ser vivido, minha feitura de vida.                                                                                                                                                                                                        
   


Foto: Edgard Navarro/Lagoa Encantada/Ilhéus-BA                               

2 comentários:

  1. Rita,
    Você é mesmo como uma parabólica, captando as sensações escondidas nos quintais amarelados pelo tanto de mal-me-quer salpicado...
    Gostei do conto. Já havia lido. Gostei de novo.
    Abraço
    Neuzamaria

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  2. Rita,
    passando por aqui e vê seu olhar é de uma magnitude grandiosa...poema ou conto pra lá de belo.

    Saudade de ti....

    LUI Z

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