sexta-feira, 20 de maio de 2011










 Poesia, Aroeira e Abricós!
 Rita Santana 









 





            Naquela sexta-feira de maio, assisti a dois espetáculos maravilhosos. O primeiro deles foi a película Poesia (Shi, 2010), uma produção sul-coreana de Chang-dong Lee, ganhadora do prêmio de melhor roteiro no festival de Cannes.  Escrito especialmente para a veterana atriz da Coreia-do-Sul, Yoon Jeong-hee - que estava sem filmar há quinze anos. O resultado foi uma grande atuação que a fez concorrer como uma das favoritas ao prêmio de melhor atriz do festival. Infelizmente, Julliette Binoche levou a estatueta com a personagem Elle, no filme Cópia Fiel de Abbas Kiarostame. O segundo foi o espetáculo de teatro Pólvora e Poesia de Fernando Guerreiro, sobre o qual também pretendo escrever mais tarde. Em ambos a Poesia é a protagonista.

No princípio é a água. Um vasto rio abre o filme e invade a tela. O barulho da água mistura-se às vozes de crianças que brincam logo ali, à margem daquela vastidão acinzentada. Os nossos sentidos são tomados pela liquidez perene da matéria em movimento, a produzir uma melodia que talvez nos remeta para tempos imemoriais, intra-uterinos, tempos da nossa memória afetiva primordial. Talvez seja essa energia a nos envolver nos primeiros momentos da película.

Ao fundo surge a ponte, o rio e uma montanha cujo magnetismo assemelha-se àquele do qual Cézanne tornara-se súdito ao pintar, inúmeras vezes, a Montagne Sainte-Victoire, personagem central de tantas das suas paisagens.  E é uma pintura o que contemplamos nesse diálogo entre o cinema e outras linguagens. É para ver e ouvir poesia que estamos aqui, diante da tela. Estamos aqui para assistirmos à Poesia.

 A Coreia-do-Sul é um lugar cercado por montanhas, e elas quase sempre carregam significados simbólicos de transcendência, espiritualidade e ligação direta com o sagrado, principalmente nas sociedades orientais. Assim como a água também é cercada de simbolismos em muitas mitologias em torno da origem da vida, purificação do corpo e a elevação da alma. Quem sabe aí resida a escolha desses signos para abrirem a narrativa. A montanha e o rio como elementos identitários daquela comunidade, associados à vida e à morte.

O nosso olhar desloca-se da montanha e vai até as crianças que brincam por ali, porém nossa visão é invadida novamente pelas águas e divisamos, ao longe, um corpo que boia. A acuidade visual é solicitada, tentamos adivinhar de quem é aquele corpo, e percebemos que se trata de uma criança, uma menina morta. Ainda estamos atordoados e acontece uma atmosfera de cumplicidade entre nós, leitores, e tudo o que virá. Já estamos inundados pelo filme e o carpete da sala de projeção encontra-se encharcado, pois a água despeja-se sobre o nosso mundo e molha  nossos pés, tamanha a precisão daquela câmera, tamanha a tristeza provocada pelo encenador, pelos deuses.

Surge, num corte, a mulher que será a nossa personagem central. Mija, uma senhora de 66 anos, chapéu, echarpe de crochê, bolsa de palha, vestido ou saia, sempre. Assiste à TV na recepção de um hospital e está concentrada na notícia sobre o corpo de uma estudante encontrado boiando no rio.  A menina cometera o suicídio atirando-se da ponte. Mija é chamada pela recepcionista.

 Diante do médico, revela que sente dores e esquece muito as palavras. Esquecer as palavras. Após ser encaminhada para uma especialista no mal de Alzheimer, ela sai do hospital e encontra uma mãe ensandecida diante de uma maca vazia dentro da ambulância. No meio da rua, aquela mulher chora a perda da filha que é a menina do noticiário. Mais que chorar, essa mãe morre diante de nós numa convulsão de dor, tibieza, desatino. Uma morte que se revela na alma; morte de mãe que perde filho. Aquela mulher é puríssima dor.

Os planos abrem-se, a rua cresce e vemos a nossa Mija solidária, também ela atordoada, perdida e impotente diante daquele drama. A interpretação da mãe é fantástica, intensa, memorável e tão real que tememos por ela e também por nós, por nossas desgraças vindouras, passadas, por nossas perdas. Sentimos a mesma impotência de Mija. Essa terrível impotência cotidiana diante das cenas do mundo. Ela que desde o princípio sentiu a dor do acontecimento, e isso será determinante para o desfecho da trama. Acontece uma espécie de simbiose entre ambas, sem que se olhem, sem que se falem. Uma comunicação íntima e invisível acontece. Sabemos!

O figurino ocupa sempre um papel fundamental na composição das personagens. Aqui, o figurino e a personagem são indissociáveis. É da natureza poética que falamos. Ela orna-se! Há nas suas escolhas sinais de quem aprecia o belo. As pessoas notam o seu requinte - às vezes duvidoso - mas inequivocamente cercado de cuidados, de zelos. É certo que muitas vezes anacrônico para uma sociedade ocidentalizada.

Ela parece preservar a tradição nos elementos que compõem  o seu guarda-roupa e dentro da sua alma. Como se resguardasse, no modo de se arrumar, sombras, marcas de uma cultura, de um passado não muito distante. Uma tradição demonstrada nos pequenos gestos, nos pequenos pés e passos ao andar em casa. Não a tradição do conservadorismo, não! Ela é antenada com o seu tempo, é ágil. Leva um celular inseparável que é o principal signo do estar aqui e agora comunicando-se, diariamente, com a sua filha que mora em outro lugar. Há muita naturalidade na interpretação e na direção dessas cenas externas sempre ambientadas com primor, com uma movimentação dinâmica e uma marcação de cena que beira o improviso. Mas a mão do diretor está lá, segurando a mão da atriz experiente e sendo levado por ela. Nós também estamos atados às suas mãos.

 Talvez a palavra tradição esteja subjacente e permeie o universo mais íntimo daquela mulher nos seus valores, suas crenças diante do mundo, da vida e no seu prazer pela estética, no deleite pela harmonia do belo coexistindo com as mudanças. Nada na narrativa é panfletário ou óbvio, ao contrário, tudo é silencioso e recôndito, como os pensamentos das personagens – e os nossos – os segredos, as revelações e o próprio desenvolvimento da trama.

 Ela trabalha como ajudante de um velho  adoentado, sendo responsável pela sua higiene pessoal e a limpeza da casa. Parece ter uma relação profissional e de confiança com o seu patrão, um tipo que gosta de gritar com as pessoas, mas que a olha com certo interesse. Ele está diante de um quadro de imobilidade parcial. A nossa protagonista possui uma aposentadoria insuficiente para manter o neto e a si mesma, por isso trabalha. Vai sempre impecável. Cumpre todo o ritual do banho com muito profissionalismo, e é nesse cenário que teremos instantes de erotismo, humor e mal-estar.

O caleidoscópio poético do filme arma-se aos poucos, sem pressa diante dos nossos sentidos. Já nos primeiros vinte minutos, estamos fisgados pela personagem feminina cheia de vigor. Há cenas em que o erotismo e a sedução tomam delicadamente conta da personagem. Flagramos o corpo daquela mulher – sexagenária - encher-se de jovialidade e sedução.

A linguagem do filme é precisa nos cortes, na edição e na montagem. Sinto que transitamos por mundos distintos algumas vezes, como se a montagem exercesse um jogo de contraposições. O choque de opostos encontra-se também no argumento, afinal, convivemos com uma mulher que tenta resolver o que será o grande conflito do filme. Ou seja, o envolvimento do neto com o estupro e o posterior suicídio da menina. Ao mesmo tempo, o dilema dessa mulher diante da busca pela poesia, que demora a chegar. Onde andará a poesia? Ela sai em busca do poema, como a pescar borboletas. Respiramos cada quadro da película sem rupturas abruptas, sem brusquidão, mas com alguns choques semânticos, abalos sísmicos por dentro.

E assim vemos Mija falando novamente com a filha ao celular, andando pela rua, e escondendo dela a suspeita do médico quanto ao mal de Alzheimer. Antes de entrar no edifício onde mora, depara-se com o anúncio: Aulas de Literatura: Você também pode ser Poeta.  O jogo de montagem manifesta-se novamente nesse diálogo que nos atira do real ao surpreendente, ao riso, ao inusitado. Ela olha - nós também olhamos - e cortam o nosso olhar para dentro de seu apartamento, onde há um neto adolescente mal humorado, bruto, preguiçoso, enfim: um adolescente difícil, típico, mas sem cair em estereótipos. Apesar de nunca se comunicar realmente com a avó, ele demonstra saber o que ela pensa e, apesar de ser desatento, vemos uns olhares de sentimento, de alguma consciência da situação e de entendimento sem palavras. Como se ambos soubessem exatamente o pensamento do outro durante todo o filme.

 Continuamos com aquela sensação do curso de poesia na alma. Você também pode ser poeta é uma provocação, um desafio, uma situação incômoda. Causa certo desconforto talvez pela construção social em torno do título de poeta, como se fosse uma tarefa legada a semideuses, apenas.
 
A avó é procurada pelos pais dos outros adolescentes envolvidos no crime. É comunicada que a menina fora vítima de estupro inúmeras vezes. Ao saber, a avó sai do restaurante atordoada, trôpega, quase atropela os automóveis. A cena parece repetir o atordoamento da própria mãe testemunhado pela avó do garoto, no dia em que o corpo fora encontrado. Como se mimetizadas na dor, cúmplices sem que o soubessem. Enquanto isso, os pais negociam animadamente o pagamento que será oferecido à família da menina para que permaneça em silêncio, como a escola também já o fizera. Decidem que Mija fará a negociação com a mãe, por ser mulher.

É muito rica a cena em que o neto brinca de bambolê com crianças na frente do prédio, enquanto a avó o observa do alto da sua varanda. Os movimentos pélvicos do adolescente parecem dizer da sua sexualidade, do seu corpo aceso ao desejo, da sua animalidade juvenil, incauta. É uma cena silenciosa, mas rica em significados como todo o filme.  E lá vai ela ao Centro Cultural divulgado no cartaz, aprender poesia. Ela insiste em ser matriculada, apesar de encerradas as inscrições.  Enquanto o professor diz na primeira aula:

- Ver bem, ver é a coisa mais importante.
- Ter um bloco de papel e lápis bem apontado. Quando tenho lápis e papel me sinto repleto.

Mais uma vez a personagem nos surpreende, passa a  frequentar um sarau poético. Amantes da poesia: Sarau Poético das sextas-feiras. Sempre elegante, ouve a leitura de poemas, conversa abertamente com poetas, e a sua simplicidade desconcertante nos emociona. Preocupa-se com a possibilidade de um dia poder escrever um poema. É o que ela deseja ardentemente e por isso busca pistas, caminhos, encontros, por isso faz anotações. Ela pergunta sobre a inspiração, sobre quando conseguirá escrever um poema. Temos diálogos simples sobre o exercício do fazer poético, como por exemplo: Cada um de vocês carrega a poesia no coração. A inspiração não vem. É preciso buscá-la, implorar a ela para que venha; eu já disse que a poesia precisa estar numa bacia de água.

Além do sarau literário, o filme nos brinda com cenas dos depoimentos dos colegas de Mija nas aulas de poesia. São momentos quase documentais, carregados de beleza. Pessoas comuns aparecem para contar suas lembranças, como uma mulher de 40 anos que pariu o seu primeiro filho. Conta que a criança escorregou pelas pernas com a água e era uma bola de fogo escorregando pelas suas pernas. Um homem revela que sempre morou num porão, mas resolvera mudar de cidade. Os aluguéis ali eram mais baratos e havia empregos, havia trabalho.

- E quando aluguei um pequeno apartamento, me esparramei no chão, como se fosse o dono do mundo.

O filme nos surpreende e encanta. Aprendi com ele o nome de uma planta da minha infância: abricó. Assistam! Para completar aquela sexta-feira, ainda mergulhei nas águas turbulentas do espetáculo Pólvora e Poesia, uma febre! Salvei a minha a existência que estava num desconcerto só. A poesia me salvara novamente! Dias depois, mergulhei em águas douradas de Oxum, lá em Imbassaí. Fotografei e colhi sementes de aroeira, mergulhei-as em azeite de oliva para temperar o frango de domingo. Eros estava ao meu lado. Uma delícia!





Foto: Edgard Navarro/Rio Imbassaí-Ba.

8 comentários:

  1. Não li. Mas se vc escreveu deve ser demais, não é? Abraço.

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  2. Pulsa a poesia
    por estar viva!
    Pulsa!
    Cheia de complexidade e emoção!
    Pulsa o cinema (e que encantadora é essa obra de Chand-dong Lee).
    Pulsa todo o humanismo poético de Ritinha Santana.
    Ave, mulher de coração em flor.
    Beijos. Saudades.

    O Falcão Maltês

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  3. Rita,você assistiu A PARTIDA?

    Também é pura poseia. O personagem era tocador (violoncelista) numa orquestra, mas quando ela é desfeita, ele vira tocador de corpos (mortos). A palavra que encntro para definir o filme é "delicado". Vale usar o tempo que temos para assistir. Vou assistir a sua recomendação de POESIA.

    Beijocas

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  4. Rita,
    Você me fez rever Poesia em cada detalhe. Saí do cinema de alma lavada. Ontem ví Pólvora e Poesia. Belo espetáculo. Merece um artigo seu.
    bjs
    Bertrand

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  5. Oi Rita!! Não assisti ao filme Poesia, mas após ler seu texto tão denso e poético não poderei deixar de ver.Você como sempre nos encantando!! Obrigada mais uma vez! Bjs

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  6. Neuza, o filme A Partida é maravilhoso! A dignidade do rapaz, como ele se envolve na nova profissão, os olhares, a resolução do conflito, tudo é muito bonito mesmo. É pra ver novamente. E aquele final cheio de emoção e ao mesmo tempo de equilíbrio para a difícil tarefa final? Lembro do branco predominando na tela e da dignidade do protagonista com o ritual do seu trabalho.

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  7. Essa tua resenha poética está muito boa, dá vontade de sair correndo pra ver o filme, mas não chegou por aqui, ainda. Vou ficar de olho, pois não quero perder. Assistí Cópia Fiel.Confesso que não morrí de amores! e não ví nada de especial na interpretação da Binoche, mas ela é de lá, não é? Isso pesa muito, as cartas são marcadas previamente. Os sulcoreanos são muito bons. Estou lendo os Contos Contemporâneo Coreanos, com prefácio de Boris Schnaiderman e a tradução é de uma sul-coreana que veio para o Brasil com 10 anos de idade, Yun Jung Im. Estou gostando muito, cheguei a postar um dos contos lá no meu espaço ("A máscara), não sei se chegaste a ler.
    Obrigadíssima por todas as referências que deste sobre o filme :)

    Saudades
    Beijos

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  8. Belíssimo texto. Poesia sensorial: cheiros, cores, sabores invadem os sentidos enquanto se lê.

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