sexta-feira, 26 de novembro de 2010

POEMA DO TRATADO DAS VEIAS


 
        AZUL
                                                                          Rita Santana

Sou de uma tristeza surda, funda.
Ando cansada das pernas,
Pois o meu amor brincou de picula,
E o sonho gargalhou migalhas nas toalhas de rosto,
Nas marcas pintadas do meu rosto,
Nas tralhas velhas da minha fotografia.

Ando azul porque não me reconheço gente.
Sou o próprio azul, simples, etéreo, incorpóreo,
Dos maios, dos setembros foscos de tanto sol,
De tanta ardência, dos poetas mais plácidos.
Azul dos palácios encantados, azul das moscas azuis,
Das estrias recobertas por cremes de milagres,
Azul da minha saudade-não-sei, de tanta coisa ida.
Tantas promessas me prometi,
Foram tantos os protestos advérbios,
Tantos esticamentos de veias,
Numa garganta de cobre fundido em ouro dos mais puros.

Estou em apuros porque sobrevivi até mais tarde,
Mas carrego mortes que desconheço porque sou pobre:
Deixei de estudar filosofia,
Deixei de fazer poesia,
Deixei de ir ao encontro do sol.
Perdi a maria-fumaça da minha infância,
Pra uma indústria de cacau.
Perdi os leões de mármore da minha infância,
Pras chácaras dos coronéis.
Perdi minha alegria
Pra essa incompetência diante da vida.

Não sei tratar dos amigos.
Sei tratar alguns peixes, mas dos homens não sei.
Suas escamas crespas,
Vísceras rubras demais pra minha paciência dilatada.
São flamas demais entre nós, os amigos.
Perdi e encontrei terezas, jorges, tonhos, miguéis, primos,
Aluguéis, janelas, gudes, bordados, assovios, cartas de amor,
Fraudes descartáveis, autorias duvidosas, alarmes, amores...

Perdi também palavras raras, livros,
Sonetos, versos de adolescer,
Pus, espúrios párias, pipas, chances,
Galhos secos ofertados à ilusão,
Sangue, suores, caldos de gozos raros,
Disparos de olhares que não vi,
Envelopes, vozes, madrinha, ruas, pessoas,
Esperanças, alianças, presentes,
Crianças, avós - todos os avós já perdidos - analices e luzias.
Faço qualquer coisa pra resolver
A inapetência diante da praticidade dos futurosos,
Dos que já deram certo, dos corretos, dos sem dores,
Dos bem sucedidos, dos resolvidos, simplórios,
Dos que têm dor de dente
Mas não sabem o que é dor de alma.

Pois tenho urgência é de alegria, mansidão.
Sou um azul, azulzinho escuro, claro,
Azul céu, azul serpente, azul maçã,
Azul molho-de-tomate-elefante,
Azul clarinho, quase branco, azul amianto, azul-ami,
Azul trinta, azul balzaquiana louca, azul mulher, azul negra,
Azul esquisita, azul Rita, azul Dione, azul sul-da-Bahia,
Azul alegria, azul saudade,
Azul idade de envelhecer vez por todas,
Azul sem roupa, azul peruca, azucrinada, que nada!
Azul Ferreira Gullar, azul minha boceta cor-de-rosa,
Azul cerveja, azulilás, aliás, azul pirraça.

5 comentários:

  1. Querida amiga,

    Teu "azul" me lembra um "azul" de versos meus...segue para que vejas:

    AZUL. Hoje sou azul,/ e tenho todo o tempo do mundo/ para a solicitude de um verão distante de mim/ que faz colorir a linha do horizonte entre céu e mar...// Hoje, tudo me parece mais,/
    muito mais a memória de um tempo grande o bastante/ para que minha respiração vá além do suspiro,/ além do peito que se infla...// Hoje algo me resgata a avidez/ e me torna repleta,/
    um poço cheio de palavras/ que se vão tecendo nas entrelinhas...// Hoje, o tempo se rompe,/ volta o lado da ampulheta,/ como coisas que se vão acumulando no baú das horas,/ guardadas nas memórias que ficaram...// Hoje sou colcha azul de retalhos,/ céu tecido de estrelas,/ trabalho para uma espera medonha/ de tecer e tecer o mundo e o tempo...// Hoje sou eu mesma,/ quieta e muda/ diante do anjo que decompõe a minha aurora/ neste dezembro de anseios repetidos... (Genny Xavier)
    _______________________________________

    Tá vendo? azul talvez seja a cor da alma poética que nos habita.
    Bom domingo.

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  2. Manda bonitinho, formatado que eu postarei no mesmo azul do poema. É muito bonito o seu poema, Genny! Quero seu (s) livro (s). Beijos felizes com a nossa irmandade. Manda pro meu e-mail formatado, tá? Se topar, é claro!vamos construir um céu de poesias azuis.

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  3. eita quanto azul, azul que é dor e bálsamo,
    me comove esse Azul enraizado na memória numa linguagem tão derramada de si, dos seus, sistemas entrecortados e se refazendo em tantos outros. Não, vc não perdeu, Rita. São metamorfoses a que só mesmo os poetas porretas
    se arrogam. E daí crescem, criam tentáculos ou guelras ou penas ou pelos ou...e as palavras
    vão se encantando, Rita!

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  4. mais um vez estou aqui testemulhando seus versos simples mas feitos de coraçao. "vc sabia hoje eu tive um dia assim azul,azulado marinado,quase abandonado chego em casa ligo o
    computador e vejo que vc mim diz que azul,azulado,por favor não abra a porta vc pode ficar azucrinado entao lembro que azucrinado tem tres letras pra forma azul."

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