ANTONIO NAHUD JÚNIOR
UM BREVE ASSOMBRO
A
nitidez do fim da tarde impressiona. O campo por inteiro, em matizes de cores
lavadas por recente aguaceiro; a vastidão do horizonte sombrio, quase
azul-marinho, recortado por nuvens carregadas. Em oposição a este fundo de
chumbo, um rasgo de luz solar desenha o campo, enfatizando cintilantes gotículas
no verde das ervas. Entre os tufos do arvoredo, espantosos plátanos, de folhagem
juvenil; à direita do quintal, limoeiros; couves na fieira das hortas. Ao longe,
nas encostas da mata, com urzes em festa, bailam as videiras. Nas ramadas,
brotam rebentos. O salão da casa secular, de pedra, parece-lhe soturno,
sepulcral, possuído por ruídos indefiníveis. Há uma organização tristonha de
malas feitas, livros empilhados, fotos nas paredes de gente desconhecida e
molduras protegendo desenhos ruins. O idoso procura a pêra madura, dentada,
encontrando por todos os lados páginas e mais páginas rabiscadas. “O outono
chegou”, murmura. Serve-se de uma xícara de chá de alecrim - esse seu único
alimento, chá e mais chá. Regressando à janela estreita, recebe de golpe o
sereno e os sons da terra antiga: um besouro dando voltas em torno de narcisos,
o berreiro da jovem pastora, o latido de um cão que talvez fuce a cova de algum
javali. A luz, entretanto, altera-se, clareando o longínquo lombo da montanha. A
atmosfera sobrevive em fundas depressões. “Pelo tempo Deus envia sinais e nós,
distraídos, não os percebemos”. O destino, nesse instante, está escrito na
contorção das sementes sob o húmus, nos sopros, nas raízes, nos córregos da
serra, nas veias e artérias, nas ressacas sobre os campos de linhos, nos
contornos à procura de outros contornos. Tantas imagens, tantas lembranças. A
poesia cujo sentido está em escrevê-la. “Ó minha alma! Sou eu, sou eu!”. Agarra
a caneta, e escreve: “A alegria é fundamental. Dá-me um pouco de alegria e então
construirei o mundo! Não suporto mais que a cada instante seja imperativa uma
energia formidável que nos mantenha em pé, ameaçados que estamos de cair”.
Reconhece as mãos nodosas como cepos, tais como o rosto de muitos anos, de
madeira seca, de olhos tomados pelo brio. Sabe que ser tomado pelo brio
assemelha-se ao ardor espiritual que sentiu certa vez ao caminhar numa fabulosa
montanha. Isso aconteceu na juventude. Ele se embrenhou na fortaleza de terra
possuído por rutilâncias. Passou horas na tal montanha, e ao deixá-la um bom
pedaço dele ficou nela, restando um buraco interior imenso e possivelmente
eterno. Nessa época ainda não sabia que um dia deixaria de escrever, porque a
escrita mente, é um refúgio e a presença em combustão da inexistência. Ainda
assim, sente vontade de escrever sobre a desolação que o acompanha, enquanto os
vizinhos regressam aos seus domicílios, os porcos são presos e as galinhas se
calam. A noite há de ser de chuva. Em suspense, prepara mais um chá. Pretende
bebê-lo bastante quente. Para entorpecer de vez a solidão.
Do livro: “PEQUENAS HISTÓRIAS DO DELÍRIO PECULIAR HUMANO” (2012)
Excelente descrição! Cheguei a tocar, estando lá, no pé de alecrim... esfreguei as folhinhas nas pontas dos dedos e levei-as em água no dentro da boca... O chá me fez companhia... Nahud esteve aqui.
ResponderExcluirParabéns pelo texto! como sempre Ritinha só publica o que é bom.
Abraços
Grato pela publicação, querida amiga. Amei.
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