domingo, 10 de março de 2013

Ilhéus sob o olhar de Elvira Foeppel – suas transgressões e digressões









Vanilda Salignac Mazzoni1



Por que estou esquecida sem ser mencionada nos livros sagrados?


Elvira Foeppel



      Falar sobre a escritora Elvira Schaun Foeppel é citar a cidade de Ilhéus dos anos 1930-1940 e como a autora está inserida nesse cenário, mostrar como Foeppel viu a cidade e como a cidade a viu. Logo, um painel amplo sobre Ilhéus faz-se importante para entendermos as transgressões e digressões da baiana Elvira Foeppel2.

      O título parece ser pretensioso por tentar abarcar o olhar da escritora grapiúna sob a cidade que ela adotou e legitimou como sendo de sua propriedade. Embora tenha nascido na cidade de Canavieiras, em 15 de agosto de 1923, seus pais mudaram-se, de imediato, para a vizinha Ilhéus. Mal sabia a escritora que o local, escolhido por seus pais, iria influenciar de maneira decisiva a sua vida: Ilhéus foi um caso de amor e de dor na trajetória de Foeppel, que algumas vezes criticou seu conservadorismo e outras vezes dedicou-lhe poemas de “amor e memória”.

A proposta é iniciar com um breve comentário sobre a economia, seguido da vida social e cultural de Ilhéus, e, a partir daí, inserir Elvira Foeppel no contexto.

Economicamente, a alta do preço do cacau, entre 1927 e 1928, deu maior impulso ao porto local e trouxe renda extra para os comerciantes, pois foram agraciados com a chegada constante de navios exportadores. Porém, uma surpresa aguardava os investidores internacionais e os anos 1930 encontraram a cidade portuária vivendo uma comoção econômica mundial com reflexo geral: a quebra da bolsa de valores de New York, ocorrida entre os meses de outubro e novembro do ano anterior, 1929, que repercutiu diretamente na exportação do cacau.

Esse acontecimento abalou a estrutura social e política da cidade, uma vez que os anos anteriores assistiram a uma ascensão financeira dos fazendeiros de cacau da região, aqueles mesmos que, coincidentemente, eram os controladores da política ilheense. Mesmo após a derrocada financeira promovida pela renegociação de dívidas entre as firmas estrangeiras e os fazendeiros falidos com o baixo preço da lavoura cacaueira (o que levou as empresas a incorporarem as fazendas ao seu patrimônio particular), a sociedade burguesa de Ilhéus ainda exercia um forte controle sob o comportamento moral na cidade.

O cenário cultural complementava o cenário político e financeiro. 1931 foi o ano da chegada do alemão Dom Eduardo Herberold, bispo de Ilhéus, que muito lutou para concretizar o sonho de construir a Catedral de São Sebastião. Em 1932, na cidade, só existiam três aparelhos de rádio e as pessoas se revezavam para ouvir as notícias, como os grupos eram numerosos, os ouvintes deveriam chegar mais cedo a fim de conseguir um lugar o mais próximo possível do aparelho.

Na cidade de Ilhéus, nos anos 1930, praticamente só existia uma escola normal, um colégio secundário e algumas escolas primárias. O serviço de saneamento básico, a iluminação pública, a telefonia, as estradas de ferro e os transportes urbanos eram os piores possíveis, mesmo a cidade sendo governada por ricos fazendeiros.

Desde os anos 1920 já havia sido inaugurado o Colégio das Irmãs Ursulinas, o Instituto Nossa Senhora da Piedade, porém, é nos anos 1930 que a congregação se fortalece como responsável pela educação das “moças de família”. Em 1937, foi instalado o Ginásio Municipal, cujo primeiro diretor foi Heitor Dias, um gerente da Caixa Econômica Federal muito querido pela população.

O Convento da Piedade foi erguido em uma colina situada na Quinta cedida pelo Coronel José das Neves Cezar Brasil e D. Adelaide Schaun Brasil, e inaugurado para funcionamento em fevereiro de 1916 com 16 alunas, sendo que a primeira turma formou-se em 20 de novembro de 1923. Reduto da classe média ilheense, somente as meninas tinham acesso a essa escola, e eram, na sua maioria, filhas de coronéis, órfãs ou de classe média. As filhas das famílias abastadas eram enviadas para internatos em outros estados do Sudeste, como o Rio de Janeiro e São Paulo.

Nesse Colégio, Foeppel recebeu instrução formal completa, iniciando seus estudos no Curso Fundamental, em 1936. Suas antigas companheiras do Instituto lembram que a menina costumava, durante as aulas, ficar lendo romances embaixo das carteiras, pouco se importando com as explicações das professoras. Gostava de ler poemas de Adalgisa Nery e romances considerados altamente pornográficos, como O Amante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence, o qual ela havia conseguido com o tio, o escritor, professor e intelectual Nelson Schaun, cuja fama alcançava níveis respeitáveis mesmo sendo um comunista convicto (com todos os sentidos pejorativos que este designativo podia conter para uma sociedade abastada e conservadora).

O Professor Schaun era um mestre sempre disposto a lecionar, fazia da sala de estar de sua residência um centro gratuito para o ensino da língua portuguesa. Suas alunas do colégio das Irmãs Ursulinas aprendiam com ele a recitar poetas românticos e parnasianos

Em seu livro, Educação das virgens3, Elizete Silva Passos, reafirma a ideologia e a filosofia do ensino das irmãs ursulinas e da necessidade, por reivindicação do bispo de Ilhéus, D. Manuel Antônio Paiva, de ser fundada na cidade uma escola que se responsabilizasse pela formação feminina. O ensino do Colégio das freiras, tradicionalmente de origem européia, tornou-se motivo de grande orgulho para a cidade.

Na época em que Elvira Foeppel iniciou seus estudos, o Colégio das Irmãs Ursulinas estava sob a direção da Madre Maria Thais do Sagrado Coração Paillart, uma francesa nascida em Cledeny Finistèreque, passando depois à direção de outra francesa, Madre Maria Tereza do Menino Jesus D’Croocq, a antiga secretária de Madre Thais. Elvira Foeppel cursou aí o primário, o atual curso fundamental, e o Magistério, formando-se em 1942.

Sabe-se que as Irmãs Ursulinas esmeravam-se muito no cuidado com a educação das meninas, e sobre esse comportamento, a pesquisadora Elizete Passos comenta que:


[...] o estabelecimento empenhava-se em dar àquelas jovens a formação esmerada que filhas de “novos ricos” precisavam. Assim, além dos cursos de Línguas Estrangeiras, tão significativos para pais que queriam ver as suas filhas falarem uma ‘língua enrolada’, quando muitos deles mal sabiam falar o português, empenhava-se também o estabelecimento nos cursos de pintura e de música4.


Por incentivo cultural do Instituto, em 1938, a adolescente de ascendência alemã, encenou, pela primeira vez, uma peça teatral, apresentada à cidade no “Cine Teatro de Ilhéus”. Mais tarde, a mesma peça foi apresentada em Itabuna, sempre com renda destinada à Fundação Santa Isabel. A peça era uma comédia em três atos, intitulada Divorciados, de Oduvaldo Vianna, encenada para o público como resultado das atividades do CEI (Centro Estudantil de Ilhéus) criado por um grupo de estudantes secundários e universitários, cujo presidente era o diretor de teatro e, depois, médico e escritor, radicado no Rio de Janeiro, José Carlos Vinháes.

Aos quinze anos de idade, Elvira Foeppel ousava protagonizar uma peça de teatro que trazia, para a época, um tema polêmico não só do ponto de vista social, mas também político. A encenação tinha uma proposta de vanguarda sem precedentes para a cidade, e a precoce atriz ousou encarnar o papel da divorciada. Observe-se que Ilhéus estava sob a repressão política, no Estado Novo e sua sociedade, formada por coronéis, era conservadora, além de estar, em 1938, sob o governo do intendente Raymundo do Amaral Pacheco e dos grupos religiosos que controlavam os costumes. Esse fato a fez, hoje, ser considerada como uma das precursoras do feminismo em Ilhéus.

Em 1939, Elvira Foeppel retorna ao teatro. Desta vez, como uma colombina na peça As Máscaras, de Menotti del Picchia5. A peça, dividida em três atos – O Beijo de Arlequim, O Sonho de Pierrot e O Amor de Colombina – teve seu enredo extraído da famosa história, na qual uma moça fantasiada de bailarina encanta dois rapazes, formando um triângulo amoroso. Simbolicamente, Arlequim representa o desejo, Pierrot o amor e Colombina, a mulher, objeto de posse dos dois mascarados. A personagem traz no seu cerne o mesmo sentimento que, mais tarde, estará presente na produção da autora – o desequilíbrio amoroso por não existir a possibilidade de unir duas escolhas que se encontram em dois seres distintos, portanto, a constante ansiedade da contradição e a consequente decepção por não poder reunir os dois sentimentos: o amor e o desejo – na mesma pessoa.

Do período da vida de Foeppel em Ilhéus, sabe-se que era reconhecida como intelectual, vivia na roda de literatos, e que também era uma menina muito “avançada” para uma cidade do interior do Nordeste, em plena repressão Vargas, ainda sob os últimos resquícios da moral vitoriana. O comportamento de Foeppel, à frente de sua geração interiorana, incomodava a sociedade puritana de Ilhéus. Isso contribuiu para que ela fosse marginalizada. Para os seus conterrâneos, a escritora era a imagem da mulher que ultrapassava limites, a transgressora.

O tabelião e escritor Raimundo de Sá Barreto6 lembra-se da jovem escritora que passeava pelas avenidas e clubes da Cidade, que vivia bem, livre, e que, por ser muito inteligente, teve sua vida atrapalhada pela sociedade local. Para ele, a melhor definição de Elvira Foeppel era: intelectual, nunca fora outra coisa. Mesmo assim, foi muito humilhada pela sociedade, que a via, na sua mentalidade avançada, como uma espécie de comunista.

Em uma visão mais generalizada, a escritora tinha aquilo que o senso comum costuma chamar de “personalidade forte ou maldita”, uma autêntica leonina, difícil de ser “domada” e moldada por um código social que sempre impôs à mulher um comportamento passivo, ingênuo e recatado.

Ainda jovem, ela aprendeu a pilotar um avião monomotor em Ilhéus, embora não tenha desejado tirar o brevê, costumava assustar a família dando vôos rasantes sobre à casa dos pais. Desde a época de adolescente, Foeppel já trazia no seu âmago as marcas da transgressão. Ao infringir esse modelo de comportamento em plena década de 1930/40, a escritora, ao nosso olhar, indicia uma liberdade de viver. Contrariando as exigências do modelo feminino da época, aumentando suas contravenções, admirando-a ou reprovando-a as pessoas de Ilhéus a criticavam. Basta lembrar-se do romance Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, para se ter ideia do ambiente em que viveu a escritora. E, segundo o escritor Hélio Pólvora7, provavelmente, foi na imagem da escritora que Jorge Amado se inspirou para compor a personagem Malvina.

Finalmente, em 1944, Elvira Foeppel despediu-se de Ilhéus em busca de novos caminhos, porém seu valor literário foi reconhecido e citado até mesmo pela maior referência literária da cidade, o escritor Jorge Amado, na ocasião em que proferiu um discurso em honra à Cidade e aos ficcionistas grapiúnas, que conservavam a memória de Ilhéus, irmãos de ofício e de labuta8:


Quero brindar em tua honra com os ficcionistas grapiúnas, os que narraram tuas histórias e inventaram tua humanidade, conservam viva tua memória: Adonias Filho, James Amado, Jorge Medauar, Hélio Pólvora, Sônia Coutinho, Emmo Duarte, Elvira Foeppel, Cyro de Mattos, Marcos Santarita, Clodomir Xavier de Oliveira, meus irmãos de ofício e de labuta.


Finalizando...


Ao sair de Ilhéus, Elvira Foeppel deixou para trás a sua história que refletia, através dos coronéis e intendentes, a repressão pela qual passava o país e alicerçava as bases de uma cidadezinha rica, mas profundamente provinciana e conservadora. Foeppel foi criada em meio à ditadura Vargas, o Estado Novo e, na despedida, viu, ainda, o governo ilheense de Almir Brandão Pinto, juntamente com o progresso cacaueiro na região.

Foi fácil para Foeppel suportar tanta pressão? Possivelmente não. Por vários motivos: sua beleza incomodava outras mulheres e assustava os homens; sua intelectualidade não era reconhecida à época; seus anseios por liberdade não eram aceitos. Embora estivesse vivendo no século XX, seus problemas existenciais eram, praticamente, os mesmos dos séculos anteriores – ainda não se reconhecia os direitos femininos de circulação em espaço público (a mulher deveria casar e cuidar da família); a mulher não frequentava os mesmos espaços dos homens; ela não podia opinar com pensamentos próprios (deveria concordar com o marido ou o pai); a mulher solteira não era bem vista. Essa foi a ambiência de Foeppel. A frustração e a decepção ficaram evidenciadas em sua escrita.

Marcas profundas da referência de Ilhéus em sua memória ficaram registradas na sua literatura, em crônicas sobre a cidade que lhe despertou sentimentos de amor e dor. Talvez residam nessa cidade os mistérios que cercam o mundo interior de Elvira Foeppel. Mas isso é outra prosa.



REFERÊNCIA


AMADO, Jorge. Declaração de amor à Cidade de São Jorge dos Ilhéus. Disponível no site http://www.brasil.terravista.pt/AreiasBrancas/2952/ilheus.thm.



BARRETO, Raimundo Sá. Notas de um tabelião de Ilhéus. 2.ed. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1988.



FOEPPEL. Elvira Schaun. Chão e poesia. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1956.

______. Circulo do medo. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1960.

______. Muro frio. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1961.



MAZZONI, Vanilda Salignac de S. A violeta grapiúna: vida e obra de Elvira Foeppel. Ilhéus: Editus, 2003.

______. LOSE, Alicia Duhá (Org.). Da sombra à luz: seleção de contos de Elvira Foeppel. Ilhéus: Editus, 2004.

2008: MAZZONI, Vanilda Salignac de S. Um diário em cena: Chão e poesia, de Elvira Foeppel In: O olhar de Castro Alves: ensaios críticos de literatura baiana. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, p. 447-453.

______. ALVES, Ívia. Elvira Foeppel. In: ALVES, Ivia, BRANDÃO, Isabel (Org.). Retratos à margem: antologia de escritoras das Alagoas e Bahia (1900-1950). Maceió: Universidade Federal de Alagoas, 2002.

______. Elvira Foeppel. Revista Iararana, Salvador, v.1, p.16-17.

______. Entre um punhal e uma rosa: uma análise do discurso na lírica de Elvira Foeppel. Quinto Império (Salvador), v.1, p.33-38.



PASSOS, Elizete Silva. Educação das virgens – um estudo do cotidiano do Colégio Nossa Senhora das Mercês. Rio de Janeiro: Editora Universitária Santa Úrsula, 1995.



PICCHIA, Menotti del. As máscaras. 15. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1935.



SCHAUN, Maria. Nelson Schaun merece um livro ... . Ilhéus: Editus, 2001.

1 Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pós-doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UGMG). É professora da Faculdade São Bento da Bahia, onde também coordena os cursos de Especialização em Arte e Patrimônio Cultural, Gramática e Literatura em Língua Portuguesa, e ainda é coordenadora de pesquisa do Centro de Pesquisa e Documentação do Livro Raro do Mosteiro de São Bento da Bahia. Atua nas áreas de gênero e em patrimônio cultural.

2 Elvira Schaun Foeppel foi romancista, contista, poeta e jornalista. Nasceu em Canavieiras, Bahia, no dia 15 de agosto de 1923 e faleceu no Rio de Janeiro (para onde se mudou em 1947) no dia 28 de julho de 1998. Foeppel deixou publicados três livros: Chão e poesia (1956), Círculo do medo (1960) e Muro frio (1961), além de vários textos dispersos em antologias e periódicos diversos como as revistas O Cruzeiro, Imparcial, Leitura e Carioca.

3 PASSOS, 1995, p.77-81.

4 PASSOS, 1995, p. 79.

5 PICCHIA, 1935.

6 Entrevista concedida por Raimundo de Sá Barreto, em Ilhéus, BA, em 18/10/2000.

7 Depoimento concedido por Hélio Pólvora em Ilhéus, BA, em 18/10/2000.

8 AMADO, Jorge. Discurso em praça pública em junho de 1981, quando da comemoração do centenário da Cidade de Ilhéus.

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