segunda-feira, 14 de maio de 2012

ITAPARICA E A SANTA : GILKA BANDEIRA







ITAPARICA E A SANTA

 GILKA BANDEIRA










Não nasci nem ao menos morei ou veraneie lá, mas decididamente sou itaparicana. É o que me diz esta funda, forte, e difícil de dizer, sensação que me assoma nas mais diversas horas e circunstâncias desde quando voltei a visitar a cidade há três anos. Tem qualquer coisa de nostalgia, quase banzo ou algo daquela paixão que nos faz pensar no amado 24 horas do dia e a querer estar junto dele o tempo todo. Seria então coisa de velha, que já não mais provocando suspiros nem tendo mais o suficiente romantismo para alimentar amores não correspondidos ou impossíveis, transfere o sentir para um lugar? 
 
Poderia ser, se essa atração não viesse de outrora. Criança ouvia as tias falarem felizes dos veraneios em Itaparica, fazendo com que incluísse aquela estância no rol dos encantados. Depois, na década de 70, vivi muito na Ilha, em Aratuba, Berlinque, Cacha Prego, Mar Grande. Época de praias desertas, vegetação espessa, rios limpos, fontes e lagoas de friíssimas águas ferruginosas brotantes nos côncavos dos matos, algumas entre raízes das cheirosas ingazeiras.  Sem luz elétrica a gente se fartava de lagostas, que os pescadores vendiam barato por não ter onde estocar, e o luar caía muito branco nas areentas veredazinhas, por onde se ia à praia noturna. E ali, ante a profusão de estrelas, o marulho das águas acesas, o escuro farfalhar dos coqueiros, o frêmito do vento nos cabelos e no corpo queimado de sol, diante do largo e profundo isolamento, os mistérios do universo deslumbravam.

Na cidade de Itaparica só estivera de passagem, indo de navio (no tempo em que ainda havia os navios da Bahiana e eles paravam na estação de Itaparica) a algum lugar. Só uma única vez, andei por suas ruas e fui tomada de amores, tanto que propus ao meu marido ir morar lá, mas ele não topou. Depois, tanta coisa aconteceu!.. Comecei a me afastar da Ilha, acabando por deixá-la quando o avassalador progresso se instalou. Entretanto em 2008 calhou de eu voltar e ir visitar a cidade de Itaparica. A emoção foi enorme. Descobri que a antiga atração não se dissipara nas viradas do tempo, apenas ficara adormecida. Daí que ultimamente, tenho ido lá mais vezes e sofrido o assédio da tal estranha sensação. 
 
É algo de natureza onírica, que tem a ver com o vento, os cheiros, a luminosidade, a atmosfera do lugar, com sutilezas. Chegam como visões, perpassam como cenas, que atraem, chamam e envolvem, envolvem... Algo que vem do casario colonial da Praça Campo Formoso; dos bangalôs do Boulevard, das ruas calmas ainda arborizadas (ainda, porque a maioria das árvores, como os altos tamarindeiros que de um lado emolduram a Praia do Forte e do outro o Solar dos Reis, está bem idosa e não há replantio para a substituição); das praças ou da biblioteca; das igrejas; do mercado de artesanato; da janela do quarto do Hotel donde vejo o sanhaço na ponta da cruz da capela da Piedade; do Forte São Lourenço; dos festejos do 7 de janeiro. 

Vem do mar visto de toda parte: da varanda do Icaraí enquanto tomo o café da manhã observando pescadores em ação na amurada e dentro d’água, próximos da bóia que assinala um naufrágio; do Largo da Quitanda, durante o almoço, quando pelas águas espelhadas ao sol a pino, passa alguma canoa com vela pena ou de espicha, branca ou colorida, quando não, um saveiro de içar. A coisa também emerge do azul da enseadinha da Praia do Forte, com todos remotos gritos das antigas batalhas abafados pelo leve sussurrar das águas mansas, sob a vigília do araçazeiro, nascido ou plantado, na areia da praia.

Busco explicações. Seria efeito das falas das tias? Mas há outros lugares que por referências de outrem foram mitificados e que hoje visitados não causam nada similar. Seria por analogia com Praia Grande e Periperi, onde vivi parte da infância e adolescência ou com a Ribeira onde costumava ir aos domingos em visita a tios e primos? Eram as mesmas águas calmas da mesma baía e as mariscagens, as canoas, as velas, as típicas atividades costeiras. Eram as casas antigas assobradadas, praieiras ou de fazenda e ruas calmas. Estes locais, incluso os que freqüentava na Ilha, de  tão desfigurados já não oferecem correspondência real para a carga afetiva que ficou na memória. Então a razão da sedução se daria por ter Itaparica conservado o que os outros perderam?  E, com a densidade histórica que ela sustém, o efeito se faz assim tão intenso. É possível ainda, que resulte duma captação do apreço de todos para os quais Itaparica foi especial e que, de alguma forma, como onda, persiste na atmosfera. Sim, quem sabe?... Talvez, seja coisa que só Freud ou a reencarnação possa explicar.

O caso é que, por ser assim um tanto itaparicana, me doeu o roubo da imagem de N. Sra. da Piedade. Afinal era um referencial, elemento de identidade. Desde séculos, a santa fazia parte do cotidiano da população. Era a ela que os homens iam pedir proteção antes de irem à pesca e a quem as mulheres rogavam bênçãos para seus maridos e filhos. Ainda que se diga tratar de mero ídolo, os séculos de adoração e as vibrações de fé dos devotos por certo a tinham consagrado. Além disso, foi uma heroína da Independência. Conta a lenda que, durante as lutas, uma bela mulher apareceu para ajudar os itaparicanos e, em uma das batalhas, ela abriu os braços diante do mar, impedindo que os bombardeios dos portugueses atingissem a população e suas casas. Finda a luta, foram ao nicho agradecer a Nossa Senhora pela vitória. Foi quando, espantados, notaram que a barra do manto dela estava suja de areia da praia. Logo a notícia de que a virgem da Piedade tinha pessoalmente ajudado os itaparicanos, se espalhou por toda ilha. 

         O nicho da santa fora instalado em 1622 pelo português João Francisco e dele passou aos cuidados do Visconde do Rio Vermelho. Após a morte deste, os herdeiros, em Salvador, mandaram buscar a valiosa imagem portuguesa do sec. XVII. Mas a população liderada por Maria Felipa de Oliveira (outra heroína, esta, de carne e osso) se apoderou da imagem e botaram o mensageiro pra correr. No lugar do nicho foi erguida a capela para a Santa, que ali ficou, como heróica padroeira, até ser roubada em dezembro. Junto com a preciosa obra de arte se foi parte da cultura, da história e de muitos corações de Itaparica. Faço fé que, em vez de mau agouro, isto seja um alerta para não se deixar Itaparica vir a ser mais um lugar a perder o caráter e a tão fina sedução.  



































































Gilka Luiza Bandeira Espinheira ou simplesmente Gilka Bandeira é baiana de Salvador, Jornalista e Bibliotecária aposentada, exerceu as profissões, principalmente nos jornais: ‘Tribuna da Bahia’ e ‘A Tarde’ e no SERPRO. Realizou cursos e palestras, participou de congressos nacionais como conferencista, publicou ensaios e artigos em jornais e revistas, tendo também atuado como professora de Método de Estudo e de Filosofia.  Atualmente, além de realizar normatização de trabalhos acadêmicos e editoração, mantém a coluna de crônica na revista ‘Vilas Magazine’, para qual escreve, como free-lance, desde 2004 Tem pronto um livro sobre aperfeiçoamento da leitura, um de poesia , dois romances e outros projetos de livros em andamento.




          "Texto publicado originalmente na revista Vilas Magazine www.vilasmagazine.com.br".

Todas as fotos são de autoria de Gilka Bandeira, exceto aquelas em que ela aparece, assinadas por Mara Rabelo.







4 comentários:

  1. Gilka, seu texto é precioso. Compartilho a "saudade" estranha do não pertencimento aos lugares despertada por suas palavras.

    Barcaças, para mim é mais ou menos assim. Um lugar onírico e agora muito mais generoso por abrigar tantas maravilhas.

    Um beijo Rita Santana.Um Beijo Gilka Bandeira.

    Débora

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  2. ...traigo
    ecos
    de
    la
    tarde
    callada
    en
    la
    mano
    y
    una
    vela
    de
    mi
    corazón
    para
    invitarte
    y
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    y
    claveles
    dentro...


    desde mis
    HORAS ROTAS
    Y AULA DE PAZ


    COMPARTIENDO ILUSION
    RITA SANTANA

    CON saludos de la luna al
    reflejarse en el mar de la
    poesía...




    ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE THE ARTIST, TITANIC SIÉNTEME DE CRIADAS Y SEÑORAS, FLOR DE PASCUA ENEMIGOS PUBLICOS HÁLITO DESAYUNO CON DIAMANTES TIFÓN PULP FICTION, ESTALLIDO MAMMA MIA,JEAN EYRE , TOQUE DE CANELA, STAR WARS,

    José
    Ramón...

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  3. Parou? Cansou? Enfim percebeu que eram todos só fantasmas?

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  4. Moisés! Infelizmente não consigo editar, formatar nada no blog; nada está como era antes na formatação, por isso minha dificuldade em continuar com as postagens. Mas não desisti do blog! Estou tentando! Não são fantasmas, não somos fantasmas. Você é bem real e é um presente dado pelo blog! Tenha paciência com a minha letargia tecnológica! Se souber alguma dica, aceito, preciso! Beijos!

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