Por enquanto
Renata Belmonte
Ela sempre foi uma
menina sem Deus, escutei,
ainda naquela noite, alguém comentar. E, não, nada fiz para desmentir tal
horrível afirmação. Continuei caminhando no mais absoluto silêncio. Nem mesmo
me virei para trás. Na ocasião, preferi não permitir um rosto para esta frase
tão ofensiva. Pensava que palavras poderiam ser mais facilmente esquecidas do
que pessoas. Ledo engano. Uma menina sem Deus. Eu. Sinto-me desta
maneira aonde quer que vá.
Não. Eu não o perdi
apenas ontem. Eu o perdi hoje, amanhã e em todos os dias que me restarem. Essa
é uma dor que não tem idade. Essa é uma dor que jamais irá passar.
Sim. Amar deste jeito
alguém que já morreu é realmente muito cômodo. Desta forma, pode-se ignorar
certas verdades sem nenhum tipo de confronto.
Ela está sentada diante de
mim. Nervosa, movimenta as mãos sem parar, mas seus gestos são inócuos, nada
comunicam, têm como único objetivo aplacar a enorme distância que existe entre
nós. Não, eu não estou escutando nada do
que ela diz, tenho medo de voltar a acreditar nas suas promessas, longos foram os
anos de decepção. Demorei muito tempo para aceitar que certas pessoas nunca
irão mudar, precisou que o pior acontecesse para que eu compreendesse que ela
tinha feito sua escolha de maneira irreversível. Sim, é verdade: no passado, eu
preferia acreditar que ela era omissa porque não sabia como proceder. Sempre a
escutei comentar que a vida pode ser um drama ou uma comédia e que isso depende
da opção de cada indivíduo. Hoje, adulta, constato: não concordo com nada
disso. Naquela casa, sorrisos e lágrimas eram proporcionais, mas nossos
momentos jamais foram felizes. Até mesmo as minhas eventuais gargalhadas tinham
como objetivo aliviar um certo incômodo que nos era tão familiar. Em algumas
noites, ainda escuto os sussurros, escondo-me embaixo das cobertas, tenho medo
de um monstro invisível. Quando me lembro disso, sinto vontade de chorar, penso
em contar tudo de novo para ela, mas contenho meu impulso. Repito para mim
mesma que certas pessoas nunca irão mudar e que tal confissão nada adiantaria.
Além do mais, seu aspecto frágil também me impede de levar meu intuito adiante.
Os anos não foram gentis com ela, observo seu rosto com incredulidade, rugas
aniquilaram toda a beleza que ela possuía tempos atrás. Na mesa, vejo o bolo
cheio de velinhas. Apago-as sem vontade. Perto dela, serei, eternamente, a
menina sem paz.
Não tem explicação. O
amor é assim: ele existe ou não.
Foi tudo sua culpa. Eu
não acredito em nenhuma de suas palavras. Você é a única responsável pelo que
ocorreu.
Já fazia muito tempo que
aquilo acontecia. E, depois que eu contei para ela, nossa relação se tornou
bastante difícil. Mudaram as estações, tudo mudou... Se na minha infância,
éramos amorosas uma com a outra, na adolescência, parecíamos inimigas. Alguns
podem argumentar que, nesta fase, é natural esta competição entre mãe e filha.
Mas tudo isso era muito terrível para mim. Todos os dias, ela pontuava meus
defeitos com grande satisfação. Escutei, por diversas vezes, que o meu jeito
tímido era sinal de fraqueza e que eu não tinha nenhuma beleza, pois havia
puxado tudo da família do meu pai. Ora, é claro que, às vezes, ela demonstrava
algum carinho, mas tais momentos eram muito raros, escassos. Também é verdade
que eu a magoei com frases duras, mas sempre reconhecia meu erro e apenas agia
assim para poder me defender. Regras absurdas que ela me impunha faziam com que
aquela casa parecesse um quartel. Mas toda a nossa suposta discórdia possuía um
obscuro motivo. Não podíamos suportar o silêncio. Precisávamos de uma quota
diária de gritos. Somente desta forma, conseguíamos fingir ignorar a real razão
de nossos atritos.
Não. Eu não o perdi
apenas ontem. Eu o perdi hoje, amanhã e em todos os dias que me restarem. Essa
é uma dor que não tem idade. Essa é uma dor que jamais irá passar.
Ela está sentada diante de
mim. Nervosa, movimenta as mãos sem parar, mas seus gestos são inócuos, nada
comunicam, têm como único objetivo aplacar a enorme distância que existe entre
nós. Não, eu não estou escutando nada do
que ela diz, tenho medo de voltar a acreditar nas suas promessas, longos foram
os anos de decepção. Demorei muito tempo para aceitar que certas pessoas nunca
irão mudar, precisou que o pior acontecesse para que eu compreendesse que ela
tinha feito sua escolha de maneira irreversível. Ainda no final daquela noite,
eu cheguei a lhe perguntar: Como você pode amar mais esse homem do que eu? Ela
apenas respondeu: Não tem explicação. O amor é assim: ele existe ou não.
No dia em que meu pai
morreu, chovia muito. Descubro que irá cair um temporal, trovões insistem em
fazer barulho. Que eu saiba ninguém morreu, mas é meu aniversário. Hoje,
completo trinta e dois anos e, pela primeira vez, fico mais velha do que meu
pai. Sofro. Não acho natural isso. Tenho medo de envelhecer sozinha. Na mesa,
vejo um bolo cheio de velinhas. Por coincidência, também é o meu último dia
aqui. Doze anos presa por me defender de um homem que, todas as noites, ia ao
meu quarto me machucar. Realmente, não acho esse mundo justo e não sei se tenho
o que comemorar. E, mesmo com tantos motivos para deixar tudo como está,
vendo-a tão nervosa, não mais me contenho e pergunto:
-Mãe, o que afinal você
veio fazer aqui?
No caminho de volta para
casa, olho para o céu. Por enquanto, não chove. Sim, o céu continua sendo
apenas o céu. Não vejo meu pai. Não vejo
Deus. Mas eu sei que alguma coisa aconteceu. Ela está ao meu lado. E está tudo
assim tão diferente.
( Do livro Como se não houvesse amanhã)
Sou fã de Renata.
ResponderExcluirRenata, por onde você anda?