quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cruz e Sousa: Selo Preto por Sylvio Back

 




 
Selo Preto
Sylvio Back




O poeta João da Cruz e Sousa é um estigma literalmente escuso da literatura brasileira. Por ser uma exceção na então sociedade escravocrata do século XIX, sua soberba negritude acabou por matá-lo aos 36 anos. Uma "igualdade" demais.

O preto no branco, preto-e-branco. Desde o início ele soube, como se uma película de nitrato fora, que seria "incendiado". E não incensado – simbólico expediente comum na alvorada do cinema (que lhe foi vizinha), quando as salas eram perfumadas durante a exibição de filmes místicos e religiosos. Como o personagem de “Tempo de Guerra” (Les Carabiniers, 1963), de Jean-Luc Godard, Cruz e Sousa tentava abarcar a tela, entrar na cena, assumir a luz bruxuleante da ilusão.

Inutilmente. Sua ambição e obra ficaram na penumbra do mainstream da poesia do seu tempo. Como o então "bizarro" cinematógrafo, o "Assinalado" ("... A Terra é sempre a tua negra algema...") sobreviveu à madrastice dos contemporâneos. Antes de vitimá-lo, a posteridade reservou-lhe o portal da glória.

Ora fragmentariamente biografado, ora alvo de pura hagiografia, sua trajetória em Nossa Senhora do Desterro (nome original de Florianópolis (SC) – do nascimento em 1861 à sua vivência e morte no Rio de Janeiro entre 1890 e 1898), assemelha-se a um filme velado. Sobram vácuos estéticos e morais, além de contornos anímicos e existenciais que mais confundem do que decifram. Mesmo que se queira desideologizar o poeta, desenraizá-lo d'África ou despaisá-lo do Sul do Brasil, aproximar-se dele através de sua órfica e lunar poesia será sempre uma metáfora sobre a tragédia que é ser preto no Brasil – em todos os tempos.

Um negro de "alma branca" – segundo o torpe perfil que a lenda chancelou? Um preto apaixonado por loiras germânicas, flertando com um vocabulário, digamos, valquiriano, e cuja poesia tem induzido críticos a disfarçadamente até "nazificá-lo" avant la lettre (ao ponto de, como Roger Bastide, contar os fonemas que "trairiam" sua etnia)? ou "o negro que não conhecia seu lugar", um "preto estrangeiro" (na expressão do amigo e testamenteiro Nestor Vítor)?

Quem sabe, o fascínio do personagem resida justamente nessas brutais contradições que lhe assolavam o íntimo cosmopolita de preto circulante naquela quadra onde um ódio latente e explícito aos seus continuava incólume. Quem sabe, repito, Roger Bastide, tachou-o de racista com o ciclópico poema, “Marche aux flambeaux” sob os olhos. Ali, Cruz Sousa faz inacreditável e raivosa fé antissemita em versos de arrepiar (“... Ó ventrudos judeus, opíparos obesos,/De consciência obtusa, ignóbi e caolha/Que no mundo passais grotescamente tesos...”).

Da mesma forma que, em carta enaltecedora ao escritor catarinense Virgílio Várzea, o poeta comunga do Weltanschauung recorrente da época, de suposta comprovação científica da superioridade racial dos brancos, negando a própria natureza e atávico vínculo com suas raízes africanas: “... para mim, pobre artista ariano, sim, porque adquiri, por adoção sistemática, as qualidades altas dessa grande raça...”

Então um negro culto e abusado, sempre elegante e galante, na busca por um auto-embranquecimento como atalho para ascender, fugir da casta (talvez espelhando no seu igual-desigual Machado de Assis – um "mulato à inglesa", como se dizia num tempo em que ninguém queria ser preto ou cafuso)? Ou o horror letal do crioulo gênio crente que basta o talento para ser reconhecido – sem desconfiar que para além do racismo mais vil germina o cancro da inveja.

Nem a desgraça cotidiana notória e a morte de Cruz e Sousa redimiram os seus algozes das redações, dos suplementos literários, das editoras, da repartição pública, das rodinhas e tertúlias literárias. Nem o negro bem-sucedido, o jornalista e escritor, José do Patrocínio, de olho na história ao pagar seu enterro, inconscientemente sobre o caixão deitou em forma de coroa o alívio e o escárnio de toda uma geração. A pessoalmente ciclópica obra de Cruz e Sousa, única em toda a língua portuguesa, é a maior vingança.

Cruz e Sousa é o vagão de gado, o cadáver tísico, batom de sangue fresco nos lábios – ao colo grávido da amada Gavita, a "preta doida" do Encantado. 

Cruz e Sousa é o andor que alegre carrega as paixões pela atrizinha branca Julieta dos Santos e pela adolescente Pedra Antióquia, negra "... deidade linda..." – sua noiva-donzela por oito anos.

Cruz e Sousa é o tantã da musa atávica "... Vozes veladas, veludosas vozes/Volúpias dos violões.../... Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas".

Cruz e Sousa é a sombra chinesa que passa incógnita pela sofisticada rua do Ouvidor, empobrecido, adoecido e tão "enegrecido" quanto todos os exilados pela cor.

Cruz e Sousa é o seu próprio rio "... amargamente sepulcral, lutuoso, amargamente rio" – nele suicidando-se em sonhos de grandeza literária e nobreza social.

Cruz e Sousa é a fome de Gavita e dos filhos, "... indigência terrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada...", que ele inerme assiste de umpalco mambembe.

Cruz e Sousa é a solitária vela acesa no altar – encimado com sua última foto – onde os parcos e fiéis simbolistas lhe "rezam" os poemas em uníssono.

Cruz e Sousa é a pomba-gira que baixou à revelia no terreiro da poesia brasileira, desossando-a de toda e qualquer possibilidade de um duplo.

Cruz e Sousa é o excitado Eros ("... Carnais, sejam carnais tantos desejos...") a banhar-se nas areias desérticas da lagoa da Conceição, em Nossa Senhora do Desterro.

Cruz e Sousa é o voyeur impertinente da vaziez provinciana que o expele como depois a ex-corte o Cruz e Sousa é a abolição das senzalas, das tribunas e guerrilhas literárias, "... escravocratas eu quero castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!"

Cruz e Sousa é o "emparedado", – a atroz rejeição e desqualificação, inclusive, entre os seus, para quem sempre foi "branco demais".

Cruz e Sousa é a efígie fantasma do olhar ebúrneo que durante décadas congelou no cemitério São Francisco Xavier do Rio de Janeiro.

Cruz e Sousa é hoje poeira que levita pelas esquinas da Ilha de Santa Catarina, o dedo em riste, exigindo reconhecimento e visibilidade antes de ser, mais uma vez, desterrado.

Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor. Diretor do docudrama, “Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro” (1999). É autor de 37 filmes de curta, média e longa-metragem (11), publicou 21 livros (poesia, roteiros, contos e ensaios). Prepara o lançamento nacional de “O Contestado – Restos Mortais”.



 Foto: Lúcio Giovanella
Ator: Kadu Carneiro

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