sábado, 15 de outubro de 2011





Nana Caymmi
Rita Santana




O filme Nana Caymmi em Rio Sonata é belo e deve ser visto por todos que amam a boa música, a cultura brasileira e Nana, é claro! Teria sido preferível indicá-lo à época em que esteve em cartaz nos cinemas, mas - qualquer que seja o suporte de exibição - será, em qualquer tempo, uma experiência impactante, doce e gostosa de sentir. 

Uma neblina imensa toma a cidade do Rio de Janeiro – divulgada sempre pela sua esplêndida luz solar. É entre a  neblina que teremos a revelação de Nana - um sol intenso demais para a fraqueza dos nossos olhos humanos - daí a proteção do cinza, pois esse é um dos significados simbólicos atribuídos a esse fenômeno natural que se impõe sobre os nossos olhos, ou seja, atenuar o brilho de astros e estrelas de grandeza maior.

Desde o início da película, percebemos a negação dessa associação costumeira entre a Cidade Maravilhosa e o Sol. Talvez a linguagem nublada remeta para outras identidades do lugar, outras formas de captar a cidade e a decisão de ocultar velhos clichês, velhos olhares. A chuva provocará a intuição da fecundidade da terra, adentrada com pés e alma nos labirintos das matas pelas lentes do cineasta.

Talvez o diretor também saiba que um dia de chuva é tão bonito quanto um dia de sol. Eu - que sou leonina e preciso de luz para existir e ser feliz – traio o Sol inúmeras vezes com a paixão descompassada que sinto pelo plúmbeo das nuvens. Amo as nuvens, as nuvens que passam... lá ao longe... lá ao longe... as maravilhosas nuvens. (Baudelaire).

Aos 42, a paixão parece ficar mais intensa. E é deslumbrante contemplar o Rio chumbo, completamente chumbo. Além do mais, sou apaixonada por aquela cidade incrustada nas pedras. Não fiz grandes viagens na vida, mas conhecer Paris não causou - nem de longe - a sensação que tive quando vi pela primeira vez o Rio de Janeiro, em companhia de Lilian Navarro e Cyria Coentro, na época em que fizemos a novela Renascer. Quanto tempo, meu Deus! Ali, meus olhos arregalados de moça jovem se perderam, evidenciaram a minha natureza provinciana. Voltar ao Rio será sempre deslumbramento, serei sempre a tabaroa diante daquele escândalo de lugar.

 Tenho afetos com pedras. Em Ilhéus, gosto muito da praia da Concha por causa das pedras que piso, escalando descalça a textura rude das rochas até encontrar a água, o mar. Lá, há tartarugas sempre navegando com suas cabeças imensas que deixam a gente em dúvida sobre a natureza daquilo que navega e cruza as águas. Itacaré já traz no nome a sua ligação intrínseca com as pedras, e suas praias dão esse prazer de encontrar a resistência e  a dureza que massageiam os pés, as mãos. Talvez signifique rio de ruído diferente, pedra bonita ou pedra redonda. É pedra!

Deixemos de delírios e voltemos ao filme! Há uma tomada fascinante que parte da água cinza e percorre a região portuária do Rio, partindo da Ilha Fiscal, onde se localiza um pequeno palácio, um forte da marinha, famoso por ter sido cenário do último baile imperial. Um cenário cinematográfico! Ali meus olhos permaneceram para sempre, até hoje. Quando a câmera já tiver partido para a vida urbana moderna e para o tema do documentário, o nosso pensamento permanecerá naquele mistério, naquela arquitetura solene e delicada, inoportuna ao Novo Mundo, aos trópicos, enfim. Mas o que dizer de todo o discurso arquitetônico implantado aqui no Brasil durante o período colonial? Andar em Montpellier, por exemplo, me fez ficar boquiaberta, não com o que eu via na arquitetura de lá, mas como era possível reconhecer a Bahia, o Brasil naquilo tudo que foi transportado.

 Acontece que o tema do filme é Nana, uma menina que nasceu no Rio, quando deveria ter nascido na Bahia, pois ela é filha de Caymmi e Stela. São nossos todos os filhos do casal. Já assisti ao documentário há algum tempo e o que direi aqui são impressões e anotações feitas sem aquele frescor da memória, que daria uma dimensão mais fiel do sentimento arrebatador que me tomou durante e após o filme. 

A narrativa contempla as florestas do Rio de Janeiro privilegiando imagens de borboletas, aves, árvores, e talvez seja uma monarca belíssima que surge entre a vegetação abundante, captada em voos profundos da câmera. Vi Nana naquela borboleta Inocência. Talvez algumas gruas também sejam utilizadas na poetização da paisagem, em movimentos sempre de mergulho e passeio, como se o poeta-cineasta estivesse a metaforizar com as imagens da natureza, a música, o Brasil e, muito especificamente, na floresta da Tijuca, a própria Nana na sua grandiosidade.  A sensação é de metamorfose: Nana aparece em forma de Tucanos, araras, aves da nossa fauna, folhas, plantas e árvores da nossa flora. Mas tudo isso é só sentimento e viagem. Nana também é a gente brasileira. Sobrevoamos a magia que é o Rio entre nuvens, neblina, uma chuva que molha a cidade e encharca a nossa alma de brasilidades.

Além da floresta, as pessoas comuns são protagonistas do documentário sobre Nana Caymmi. Pessoas dançando, pessoas esperando no ponto de ônibus, sob a chuva - é claro. Os guarda-chuvas do nosso cotidiano surgem coloridos envoltos no chumbo-chuva como objetos de cena roteirizados para comporem o cenário, tal é a beleza poética conquistada nesse olhar sobre as ruas e a rotina da população que vive na boa, na real a cidade. A fotografia insiste nas gentes e suas rotinas, enquanto a trilha sonora desenrola-se. Tudo porque a música vem desses sentimentos humanos captados pelos compositores no drama das pessoas, nas suas perdas, seus sonhos, esperas e suas frustrações. Vemos pessoas em aulas de dança de salão. E o que elas dançariam, senão, Nana? E o que também nós dançamos por lá, transportados que somos para os cenários, a ambientação?

Saímos da rua, das gentes e encontramos outra brasileira, não menos flagrada, por acaso, trabalhando no estúdio a próxima música que será gravada. Vemos os anéis de Nana e todo o despojamento do dia-a-dia. O filme se dispõe a não ter produções artificiais, como se pretendesse atingir a naturalidade de uma câmera ausente, câmera desligada. É como se a própria Nana fosse surpreendida na sua vida diária e estivesse entre nós, os amigos. 

- Eu não sei fazer nada sem música. Comecei a cantar com dois anos. Era um clássico.

 Tudo despenca como que casualmente sobre a nossa cumplicidade desprevenida e, agora, inelutável. A música que vem de Nana tem a sua origem no povo, nos sentimentos da população brasileira. A música nasce do povo! Parece ser essa a aprendizagem oculta a ser feita na leitura do documentário. O filme nos diz isso o tempo inteiro, através dos flagrantes desconcertantes que nos transformam em observadores e personagens que também são vistos e flagrados quando o olhar de algum desprevenido cai sobre nós, no momento da observação. Somos uma terceira câmera fazendo a subjetiva do nosso próprio olhar, ou qualquer coisa que o valha. Pessoas comuns nas janelas, porteiros batendo papo, mulheres limpando vidros, olhando o mundo, quando se deparam conosco. Desconforto, cumplicidade! Olhamo-nos mutuamente, sôfregos.

Em todas as canções que canta, Nana demonstra uma entrega absoluta à canção. Com ela percebemos claramente a diferença que há entre ser uma cantora e ser uma grande intérprete. Comove-se enquanto canta e segue letra e melodia tomada pela atmosfera que ambas sugerem. Parece uma atriz entregue à cena, à personagem da canção. A emoção de Nana ao cantar é a de uma intérprete. Ela diz que se concentra muito na canção, no que ela diz. É uma lição de interpretação para nós atrizes. Lição que inutilmente será aprendida e esquecida no levar dos dias. Esse saber não se aprende. Como em Medo de Amar de Vinícius de Moraes, onde ela se emociona cantando: 

Vire essa folha do livro e se esqueça de mim
Finja que o amor acabou e se esqueça de mim
Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz
E que ter medo de amar não faz ninguém feliz

Agora vá sua vida como você quer
Porém, não se surpreenda se uma outra mulher
Nascer de mim, como do deserto uma flor
E compreender que o ciúme é o perfume do amor.


A música deixa de ser dos compositores e passa a ser dela. Aí o mistério de Nana: ela toma para si a experiência da personagem da música e serve ao seu público o seu sentimento, o seu timbre forte, rouco e doce, dramático tornando-se intérprete daquele drama. Empresta a sua alma ao povo que reconhece a tradução da sua dor, do seu desespero, da sua alegria, da sua perda. Não temos essa mesma experiência em Elis, Piaf, Cauby, Maysa e Billy?

Temos Nana na boca dos vendedores de vinil que mercam seus antigos discos nas calçadas e dão uma aula sobre os discos lançados, os sucessos de Nana, o ano da gravação. É um momento em que os parâmetros do saber caem por terra, afinal, quem lida no dia-a-dia com a música como sobrevivência e alimenta-se da música para resistir e sonhar, senão os vendedores de vinil? Quem canta e acompanha a carreira dos seus músicos preferidos?  É o povão. É um belo momento esse encontro com os vendedores de rua, pois eles cantam velhos sucessos, relembram as novelas que tiveram Nana na trilha, tudo com um nítido afeto por ela e impressionante conhecimento sobre datas, nomes dos discos, ano de lançamento, uma loucura. Um mestrado!

 Vemos Nana diante do seu público, e uma multidão ao ar livre esperando que ela cante: Alguém que você gostaria que estivesse sempre com você... Ela abre os braços ao seu público. Em outro momento, Nana no automóvel passa por ruas esburacadas do Rio e se queixa. Conversa com o motorista. Diz que aquela passagem em frente à Rocinha é muito perigosa, é área de risco e que ali tem muitos buracos. 

- Grajaú... É Faixa de Gaza.  Espirituosa, ela é engraçada!
- Eu posso falar, eu sou do Rio – provoca. 

E eu abestalhada, penso: você é da Bahia, Nana! Ainda divaga sobre o tempo, os pescadores, as imagens dos lugares por onde passa. Caímos no Festival Internacional da Canção de 1967, através de imagens de arquivo que nos transportam para aqueles tempos onde ela conheceu Caetano, Gil, Bethânia e Gal. A música Saveiros de Dori Caymmi e Nelson Motta, interpretada por Nana Caymmi, venceu a fase nacional do I Festival Internacional da Canção. Vemos Dori cantando Saveiros e falando sobre a tolerância, a idade, a irmandade e a sua preferência por Nana entre tantas cantoras brasileiras, inclusive Elis Regina. Cantam ela e a família, todos juntos, Saudade de Amor de Dori e Paulo César Pinheiro. Os bastidores do universo musical, com ensaios e linguagem cifrada: tudo ali, deliciosamente demonstrado. 

Vemos Nana entre amigos jogando baralho na rotina de quem gosta de um jogo de cartas e se reúne com as amigas, fazendo piadas e, de repente, sai do jogo e começa a cantar, sorrindo. Todos, indiferentes à câmera, continuam jogando. Ela diz:

- Eu me adoro cantando; eu gosto demais de mim...
         
         Nana fala de Nelson Motta:

- Nelson tinha 12, 13 anos. Nelson tocava e Nelson quando toca, dói.

Eu fiquei pensando nesse Nelson que eu desconheço ainda; foi uma revelação, uma descoberta cheia de esperança de aprofundar, de saber. Nelson que hoje surgiu chorando na TV, ao assistir mais uma vez ao espetáculo teatral Tim Maia - Vale Tudo, o Musical, cujo texto é de sua autoria.

Nana! Os pais ficaram admirados ao vê-la cantando tão precocemente. Filha de Stela Maris, cantora, e Dorival Caymmi, Nana conta que se casou com um médico e foi morar na Venezuela. O casamento acabou e Nana diz sorrindo:

- Homem em casa não ia ter vez. E não deu outra.

 É bacana o momento em que ela fala sobre o seu relacionamento com Gilberto Gil, enfatizando que foram companheiros e casados. Ao tempo em que ele também ressalta, com a mesma intensidade, o casamento de ambos, que era seu companheiro e que moravam juntos, eram casados. Ambos sentem a mesma necessidade de informar ao grande público esse dado biográfico que parece esquecido. As edições são tão mágicas e poderosas, sempre! Gil fala da música Bom Dia que fizeram juntos e atesta que a canção é mais de Nana que dele mesmo. A emoção de Gil, enquanto fala, é muito intensa. 

Vemos um depoimento de Nana, tão lindamente jovem, de uma beleza altiva, traços fortes que já revelam muito do temperamento da moça. Após a apresentação que ela e Gil fizeram juntos no III Festival de Música Brasileira da TV Record, em 1967, Nana diz:

- Estou feliz! Quanto carinho do público. Esses aplausos já valeram qualquer classificação.

Sobre a sua não adesão ao Tropicalismo e à Bossa Nova, ela reflete:

- Nunca fui cantora de movimentos. Eu nunca me deixei rotular; eu canto tudo que eu gosto. Quero ter liberdade para fazer isso.

Temos cenas corriqueiras como o perder os óculos e procurá-los na bolsa, não os encontrar e verificar que nunca saíram dali. Milton Nascimento surge cantando no passado e também deixa o seu depoimento de que sempre compôs para Nana e até hoje o faz.
   
Temos Tom Jobim tresloucado ao piano com Nana, o Maestro inventando um piano a cada instante; Erasmo Carlos, João Donato, Sueli Costa (compositora que sempre mobilizou a minha alma com o seu “meu coração ateu quase acreditou”), Miúcha, Maria Bethânia e Nana, cantando juntas. Comentários curiosos como o sucesso que é ter suas canções na trilha das novelas da Globo, ou a dificuldade dada por algumas canções, como Ponta de Areia:

- Tem muita música difícil. Gravar é bom, mas ir pra show com aqueles músicos difíceis...

Sobre Caymmi ela diz: meu pai é a fonte de tudo isso. 

Com quem você estiver, não se esqueça de mim... Conversa com o tempo. Nossa senhora! Só louco! A música Acalanto foi feita pra ela. Presente maior ninguém no mundo pode querer, ela diz qualquer coisa assim. O resto das anotações impressionistas se perdeu entre letras embaralhadas no caderninho. Só mesmo vendo o filme. Espero que vejam e se apaixonem. O texto é apenas um rabisco de tudo que eu gostaria de dizer lindamente sobre o filme. É só um toque, uma dica. Qualquer retificação, estamos aqui.


Ficha Técnica

Direção: Georges Gachot
Roteiro: Georges Gachot
Depoimentos: Dorival Caymmi, Nana Caymmi, Maria Bethânia, Erasmo Carlos, João Donato, Gilberto Gil, Antônio Carlos Jobim, Milton Nascimento
Fotografia: Pio Corradi, Matthias Kälin
Edição: Ruth Schläpfer
Produção: Georges Gachot
Distribuidora: Imovison
Duração: 85 minutos
País: Suíça / França
Ano: 2010



3 comentários:

  1. Oi, Rita, bom dia!
    Estou passeando pelo seu blog agora, já o estou seguindo... faça uma visita ao meu blog também.
    Abç!

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  2. Georges Gachot é um escultor de rosto. A caméra dele está sempre a distancia adequada do sujeito, sobretudo.
    BF

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  3. Geovani! Visita feita e foi bom perceber a seriedade do seu blog. Assuntos do nosso universo educaional, bacana mesmo!

    Bruno: meu querido! Saudades! Abandonei o meu francês, mas prometo voltar ao seu blog pra reencontrar a língua amada. Se quiser escrever sobre o diretor do filme, é só mandar que eu publico. Grata pelo olhar. Beijos!

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