quarta-feira, 14 de setembro de 2011





A SAUDADE
Rita Santana














A saudade está queimando na panela.
Impotente, assisto ao espetáculo.
Alguém bateu à porta.
O cheiro sobe pelos telhados,
Invade tudo.
A saudade está queimando lá dentro,
Arrebentando as narinas,
Punindo a consciência de hoje,
De tudo que poderia ter sido.
A vizinhança acode,
A vizinhança faz fila,
A vizinhança quer apagar o fogo,
Quer entender minha letargia,
Meu pânico passivo,
Minha impunidade auto-afirmativa,
Minha lição de recolhido silêncio,
Minha música instrumental,
Meu show da vida,
Meu afogamento em cheiros,
Em arrogância de panela queimada.
A saudade, assombrada,
Foge evaporada em negrumes,
Despede-se entre a multidão,
E os nomes vagam em lumes negros,
Despertando a curiosidade das mulheres
Que arrastam filhos pelas saias.
A saudade vai embora de vez,
E me deixa na paz das panelas vazias,
Dos dias sem vizinhança desperta.
Eu, quieta num canto da cozinha,
Vejo-me na ociosidade dos espaços ocupados.
Raspo a panela queimada, passo bombril, areio,
Areio, depois de brilhosa, ponho na janela pra secar ao sol.
E sigo: vez ou outra, a panela volta pra queima.
E a vizinhança se alegra.



Fotos: Edgard Navarro/ Lençóis-BA/ Tacho de doce de D. Afra (doces bárbaros, inesquecíveis).

2 comentários:

  1. A saudade queima, arde, e dói, muito!
    Mas lendo esse teu poema que põe a saudade numa panela tão larga, rasa e tão resistente!, começo a sentir um cheiro, um aroma que exorciza qualquer dor, pois espalha-se através
    da fumaça pelas portas e janelas até o infinito! E tu que areias tão lindamente as palavras...!

    beijos, querida

    ResponderExcluir