domingo, 10 de julho de 2011







O CASO DA CASA
Rita Santana




               Olhos postos naquela estrada vão respirar beleza que não se vê de assombro e mansidão em outras bandas que não sejam estas, as bandas partidas do cacau. Cacau partido em bandas no tronco da própria árvore, no concreto seco do chão de terra firme, chão cheio de sonhos secos secando ao sol semente. Somente. 

          Resta de união entre tribos de mel e sal o desvelar, se indo ou se vindo, desta sedução rasteira. Nas manhãs, pras eras onde agosto larga o seu canto soturno de luz, a neblina, num bafo gelado de amanhecer, exala o suor entranhado no lodo da terra. Terra onde mãos cavadoras de ventos, trêmulos dedos de velhas senhoras, sonharam plantar morangos, em terras onde só nasceram balas e baladas tristes de sortes desfeitas. Idas senhoras.
 
           Desaguando os olhos por aqui, o que se tem é podridão. Tudo cheira a apodrecido, o ouro encardido do fruto, o dono, as damas e suas mansões, a cerca, e mais que tudo, talvez, pois que presente na visão: o rio. Fervilhando espuma no cheiro do que ficou arrastado pelo tempo. Lugar onde rio é esgoto e casarão é pousada.
 
Bem ali na estrada, passada a sede da Fazenda Bela Vista, na descida lateral do terreno, como quem segue na direção de Itabuna, bem ali, haverá de se ver bem pequena e de cor deformada pelo tempo, de mato ralo ao redor, bananeiras sempre nascendo - a casa. Fincada no bico de um seio verde esculpido por deus por ali, sem parceiro, esquecido na feitura da terra. A curva obedece o contorno da dobradura do rio, margeando por bambuzais soberbos, em meio à visão de águas forradas por folhas de nobres baronesas, cuja nobreza prolifera cada vez mais ofensiva para a defesa das sobras do que ainda há de doce na água doce do rio, que já não desce tão doce.

Amanhecera precipício num princípio de dia. Era manhã cedinho. O ônibus partiu de Ilhéus quase vazio. Motorista gordo, de olhos pequenos e cara amarrada sem meio sorriso, olhar parado na estrada já ia além. Mãos presas ao volante seguravam o ímpeto de lançar-se com carro e tudo na ponte do Fundão. Cobrador, cara de novo, arzinho benfazejo de gente que sonha, de soslaio em soslaio observava a quietude esquisita do casal. Mas logo dormiu, apoiado nos braços cruzados, segurando o peso de ser sonho entre borboletas com asas de ferro.

O casal. Os dois não falavam. O frio imperava aos corpos uma postura de recolhimento rígido. O silêncio aquecia ainda mais a frieza infiltrada no retrato anônimo daquelas criaturas. Ele, vez ou outra, vacilava sobre ela um olhar não sei de dúvida ou mero medo, retirava da calça uma sujeira inexistente, mas que não saía, dada a repetição nervosa do gesto. Nem assim o olhar reto e horizontal da mulher era abalado. A janela conduziria a um lá fora de enigmas e pensamentos parados, fios entrelaçados num ruído existencial de saber-se por hora deserta, abandonada e em si mesma firmada em certezas e desvarios. Mergulhada em enigmas propícios aos rituais que estariam reservados para aquele amanhecer.

Mais uma curva. Ela pediu o ponto ao se erguer tão certa de que era ali. Seguiu como se estivesse só. O pensamento do que viria ventilava assomos de alegria num sorriso breve que pousava sutil na boca. Esperou. Ele veio. Parados. Juntos viram o ônibus arrastar sumindo nas sinuosidades do asfalto. Era o fim. Abandonados por toda a humanidade na rudeza triste do motorista, na suavidade do cobrador. A neblina tomou seu lugar.

A cerca de arame farpado e as farpas da emoção que brotava no peito daquela mulher arrebatada por uma felicidade súbita. Ela e o homem que o amor escolheu para amar, de mãos dadas. Ela farpada pelo seu amor de cercas, e ele com ela, ideal que desejaria para si mesmo, uma mentira prazerosa no espelho, um pentelho solto entre a boca e o beijo.

Os passos. A manhã. A lentidão. O caminhando. A parada para respirar. A palavra que virá inesperada. O arame. A cancela fechada da Bela Vista. O atravessar o arame farpado sem rompê-lo nunca, mesmo rasgando a carne. A travessia no seio da terra suspensa, e a casa. Interior derruído pelo tempo, era bela ilusão de ninho de amor com flores, velhos retratos da infância, e paredes muito nuas.

E tudo foi somente o olhar das bocas em:

- Amo.
- Também.
- Então?
- Não sei. Acho que não posso.

E tudo foi semente em fúria de reter o tempo. Tudo somente o querer perdoar em si, o desejo de não querer o querer do outro pra vida inteira e, mesmo assim, não saber viver sem do outro desejar o desejo. Melancia partida no chão, desatando sementes pretas em meio à sangria dulcificada do vermelho. Pardieiro de almas delidas por tanto tempo sem o corpo do outro.

E tudo foi querer o agora no eternamente e o depois inviolável na liberdade do querer distâncias e novos rumores. O riso mais escancarado de doce na cara dela arriscando acrobacias estalavam as juntas das pernas, escaladas suntuosas em picos elevados e rodeios circunféricos. Perfeitos. Na parede, de cabeça para baixo, em vermelho, o aviso: carne consumida é clandestina. Na parede a rede das pernas balançando em galope, e ela ria da clandestinidade de um amor fadado ao ali, ela sempre o soube fim. Aos diabos os deuses aveludados, os abatedouros ilícitos, pior mesmo é querer o sempre quando se vive, em carne viva, o agora. Comam a carne clandestina putrefata nas geladeiras e amanheçam com ele ou ela todas as manhãs, sem medo algum, sem o terrível atropelo do querer o permissível no caos da dúvida. E tudo foi, os pés aprendendo o desejo na pele que segura a barra valente e esquece que aquece, pés aprendizes de línguas bobas, devoradoras de paraísos e issos e aquilos, afrescos de derretimentos e súplicas de sempre e mais funduras, integração total do todo num todo único, esmagado, aderido em dor e goivos gozais de gramores, linguagem dos abutres do corpo. Ele acreditando volta, submissão, remissão da resistência, abandono da negação firmada por ela, ele orgulhoso em meio à alegria que sangrava na boca dela, ele feliz como nunca com ela, tão fêmea, tão boca de beijos e palavras, as palavras da boca dela e a língua da sua boca movendo-se pelos dentes, quente, molhada. A palavra lavrada de molhação de açude, açoite de poesia vindo da língua dela, ferindo a pele, abrindo chagas na alma desprevenida. Deitada na parede, atraídos pelo telhado, tudo era chão e matagal, tudo um carnaval de carnes alegres, festa de desejos, festa de beijos gulosos por demais insaciáveis, passionais e subversivos, o avesso de tripas expostas ao sol, vicissitudes e vícios de amores e medos, a tentativa de entranças infinitas no outro, o mesmo: mesma natureza irmã de vaidades descalças, lágrimas as mesmas de adeuses ocultos.

Hoje, na vida dela há um Maurício. Na vida dele uma Patrícia. E na casa... Bem, nas paredes da casa habitada por almas de senzala, almas de cacau, há grafismos, garatujas, pinturas rupestres, registros primitivos de que, naqueles dias, o ócio era o cio saciando com sussurros roucos a linguagem dos sentidos, inenarrável, absurda, inteiramente louca. 




Foto: Chico Carneiro/Moçambique.

4 comentários:

  1. Que conto cheio de ametistas.Eu fui
    recolhendo enquanto o lia.

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  2. Uma casa cheia de mistérios expostos à luz do viver entre farpas que lanham seus viventes ávidos de amor. Fazer a travessia para alcançá-la levou-me a outro universo, povoado de signos e muita fantasia!
    Parabéns!, Rita

    beijos

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  3. Que texto lindo...Coisa boa de ler! Beijão, minha irmã.

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  4. Ester, Cirandeira e Solivan: três pérolas!

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