terça-feira, 28 de junho de 2011


 

Gil: Alegria de Quintal
                                            Rita Santana
  
No último dia 26 de junho Gilberto Gil fez aniversário, completou 69 anos e comemorou a data com o seu público no dia 25, em Imbassaí – nome de origem Tupi que significa encontro das águas – pertencente ao município de Mata de São João no Litoral Norte da Bahia.  O lugar é muito bonito, cercado de águas e de uma vegetação deslumbrantemente verde. Situa-se em uma área de proteção ambiental, portanto, oferece passeios ecológicos, cavalgadas, pousadas, campings e um planejamento urbano atual que prioriza passeios ciclísticos, preserva a mata Atlântica e abraça os transeuntes, os moradores. É um bom lugar para ser feliz por alguns dias, namorar, amar, esquecer a rotina, os compromissos, a realidade.

O encontro do Rio Imbassaí com o Mar é respectivamente doce e selvagem. Acho que nas águas douradas e doces do rio, Oxum permanece parte da sua existência. Estávamos lá e foi um belíssimo encontro com o nosso ídolo. O artista socializou a banda com o seu público valorizando cada músico e a especificidade de cada instrumento, assim, tornou o espetáculo uma consagração realmente coletiva, uma comunhão consciente que faz da recepção da obra um ato de co-autoria, co-participação. E o maestro regia toda aquela energia diversa de gentes. Não se falava em outra coisa: o show de Gil! Todos orgulhosos por recebê-lo em data duplamente festiva: São João e aniversário. 

Durante o show, o encantamento e a alegria mobilizaram todos nós. A sua habilidade permeia esse universo que gira em torno da alquimia de transformar o cancioneiro popular, a tradição musical brasileira no que ela realmente é e tem de erudito, lírico, orquestral, simples e sofisticado. Ora transformando ora revelando - com precisão de ourives - as relíquias musicais do nosso complexo patrimônio sonoro, do qual ele participa como um dos maiores compositores da história brasileira. Um criador de sons, combinações de palavras e ritmos, um poeta pleno que fez pacto indelével com a deusa Música

O seu ouvido é absoluto para tudo o que seja Brasil e mundo, e a sua alma serena e sábia, mas silenciosa, somente espia e não faz alarde do que é: um monstro, um gigante da nossa sociedade, da nossa cultura, da nossa formação intelectual. Colaborador contínuo na construção de uma Nação que há séculos luta para ser digna de tal denominação. Um músico do mundo que ampliou nossos conceitos étnicos através da sua musicalidade, da sua lucidez. A música de Gil nos conduziu, durante várias gerações, a uma consciência crítica em relação às nossas origens, nossos valores morais, nossa ética. As aulas foram abertas, repetidas infinitamente nas nossas vitrolas e nas cordas das nossas guitarras invisíveis.

  Havia uma cumplicidade entre muitos de nós naquela praça. Durante uma hora e meia, pertencíamos à mesma tribo: a tribo que adora a sua música. Depois voltaríamos para os nossos compartimentos restritos, nossos isolamentos sociais, nossas gavetas etiquetadas. Porém incomodados, mexidos, emancipados e, de alguma forma, melhores. Se Roberto Freire – refiro-me ao psicanalista - estivesse vivo, poderia aparecer por ali para realizarmos juntos uma oficina de Somaterapia, onde nos abraçaríamos completamente nus, irmãos e felizes com nossos corpos. Estávamos prontos para experiências transcendentais também, pois a música de Gil nos transporta para horizontes místicos por ele ambicionados em tantas composições. É certo: quisemos falar e falamos com Deus naquela noite! 

A atmosfera era propícia às utopias, pois estávamos entregues a uma natureza desarmada, infantil, junina. Envoltos num sentimento de brasilidade sem ufanismos extremos, mas com muito orgulho das nossas origens personificadas naquele mediador sagaz, que tão bem fez e faz a fusão de ritmos brasis e universais, num barroquismo gregoriano antropofagicamente saboreado por ele e Caetano Veloso. Gil é antenado com o nosso passado e com o nosso futuro, daí esse poder magnético que exerce sobre os jovens mais alternativos. Assim Caetano Veloso explica a ligação entre ambos em Verdade Tropical:

“O mito astrológico que diz serem os signos de Câncer e de Leão opostos e complementares – um o Sol, o outro, a Lua; um condenado à explicitude, o outro, ao mistério – foi usado com proveito tanto por mim quanto por Gil para explicar nossa união e nossa diferença. Walter Smetak, o músico erudito suíço-baiano inventor de instrumentos e amante de esoterismos, dizia que nós éramos, juntos, a encarnação do arquétipo dos gêmeos. Nascemos os dois no mesmo ano de 42, com diferença menor do que um mês. Meu pai se chamava José, e o pai dele se chamava José. Minha mãe se chama Claudionor e a mãe dele se chama Claudina.”   (Veloso, 289/ 290)

O que aconteceu naquele show foi a Educação pela Música, enquanto citava João Cabral de Melo Neto, Gil construía - como o fez durante toda a sua carreira - um mundo menos estúpido, menos hipócrita, menos arrogante, como nos levou a repetir inúmeras vezes, intensa e mantricamente durante a execução da música Nos Barracos da Cidade. Para quem acredita em encantamentos, moléculas universais se uniram por uma harmonia entre os homens. Aprendemos qualquer coisa juntos e essa Coisa não será esquecida, mesmo que não tenhamos consciência do que seja exatamente. Mesmo que não saibamos o que fazer com ela.

Alguma parte de nossa composição humana saiu modificada, com desejos mais nobres, com quereres mais inclusivos. Gil mobiliza emoções primordiais, sonhos sociais de igualdade, de preservação do meio ambiente, de preservação da espécie humana com direitos aos bens culturais e sociais assegurados a todos.  E deu mostras práticas desse ideal, enquanto Ministro da Cultura. Não é um santo, nem um deus livre das ruindades humanas, livre das ambições. Mas quando compõe, quando canta - indubitavelmente - vira uma Divindade, um Orixá, um Encantado. E é em torno dessa natureza transmutada que giramos e rendemos oferendas e homenagens. E entoamos nossos ditirambos em seu louvor! Gil tem em suas mãos – mas também em seus pés, olhos, quadris, memórias, saudades, dores, amores, áfricas, sexo, história e o seu corpo inteiro - uma Batuta que rege tantos de nós. Gil é a própria Música, assim intuo e Caetano reitera:

“Antes de Gil sair da Bahia para São Paulo em 65, um desses exames de consciência me fez dizer-lhe, de coração, que tinha decidido não mais fazer música. Gil foi enfático: “Se você não fizer música eu também não faço”. E disse que não aceitava a hipótese, que não veria sentido em seguir sem mim. Isso era para mim a própria música falando. E recuei.”( Veloso, 287)

O Maestro orquestrava as manifestações espontâneas do público com o livre improviso dos músicos, tudo regido pela performance jazzística descontraída e sábia do grande Poeta que envelhece dando lições ao próprio Tempo e a todos nós mortais, discípulos da sua musicalidade. Estávamos atentos a cada movimento seu, cada gesto, cada titubear do verbo. Estávamos felizes porque viraríamos a madrugada do dia 25 para o dia 26 com você, Gil. 

Acho que nos sentíamos como parentes, irmãos e filhos, nesse elo que a palavra público parece não representar. Tiete e também não traduzem o que se passa na ama dos que te amam. O sentimento que nos mobiliza e nos aproxima de você é sentimento de compromisso e responsabilidade, gratidão e, ao mesmo tempo, impotência porque somos anônimos, invisíveis aos seus olhos, apesar de tanto amar, de tanto amor. Gil, você é nosso! Há dentro de nós o desejo de preservarmos a sua integridade física, a sua alma, a sua música, a sua fragilidade trazida pelos anos. Sentimos o desejo de eternizar você porque precisamos da sua presença por perto, para nos guiar. Você deveria como as mães de Drummond, não morrer nunca. Porque ficaríamos órfãos sem a sua presença.

O aniversário de Gilberto Passos Gil Moreira é motivo para grandes comemorações, afinal, são 69 anos de idade e muito mais tempo de contribuição à cultura brasileira e mundial. Amo Gilberto Gil pela sua poética, pela sua musicalidade genial e pela força de penetração que tem em nossas consciências. É claro que eu sou muito  o que ouvi de Gil, o que li em suas lições musicais. Sou também sua filha porque o meu pai - Dito - amava você cantando Não chore mais (No woman, no cry)!

A sua poética exerce sobre todos nós o poder de eternidade e nos irmana com o elo de pertencimento que temos com as pessoas com as quais nos identificamos. No show, enquanto a rabeca era tocada pelo violinista francês Nicolas Krassik, que muito já domina da nossa musicalidade, inclusive o corpo já manifesta sinais visíveis de ginga baiana, vi gente de todas as classes sociais se emocionando, vibrando. Vi bêbados e pobres excluídos mergulharem da mesma forma na beleza das composições e na execução profundamente lírica do seu instrumento. Parabéns, Gil! Amamos você! Você consegue acordar a alegria de quintal que temos e que fica tão submersa. Sim, sua aura clara todos nós – clarividentes - conseguimos ver. 


Verdade tropical/Caetano Veloso. - São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Foto: Rita Santana/Imbassaí.

4 comentários:

  1. Gil precisa tomar conhecimento deste texto, mocinha. Muito lindo.

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  2. -

    Ainda o sono agoniado
    e o desatino de poeta
    de coitos em noites de sortilégios
    de urbes medievais inconquistáveis
    e aventuras rosáceas

    Ainda os encantos inventados
    piratas, alienígenas e vampiros à espreita
    o mistério da terra e da semente
    o olhar dadaísta
    e sustos cíclicos de menino

    Ainda o mundo sem fim
    o coração aos saltos
    a alma líquida e insone
    a dúvida lânguida
    o céu e os rios, a chuva e o sol

    E sobre os versos imperfeitos
    o espírito inquieto
    a melodia fraterna
    a fauna invisível
    o tempo que não volta mais

    Ainda a alquimia da vida
    o abraço sentido
    núpcias de línguas de fogo
    o desânimo de patas e focinhos
    e a compaixão em um universo molusco

    E nos subúrbios
    na aridez do sertão
    nas montanhas lá de longe
    nos recantos obscuros
    no fulgor das trevas:
    fadigas e fragilidades
    aranhas e formigas
    insultos e armadilhas
    a textura do amor que cega
    nos cobrindo de beijos e cravos

    Ainda o amor cálido se derramando
    vestido de púrpura, de prata, de delicadeza
    à espera do simples e do justo


    ANTONIO NAHUD JÚNIOR

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