domingo, 29 de maio de 2011















AS JANELAS
 Rita Santana



O meu olhar é nítido como os girassóis de Van Gogh. Tenho o costume de olhar a vida, as fotos. Persigo a revelação da imagem impressa na cena. Dormir sempre significou estar atenta para aprisionar a visão do sonho. O instante.

No princípio, tudo era o tumulto das mulheres alojadas em cortiços, avenidas, favelas, vielas, becos, ruas, casas, barracos, viadutos e túmulos.

Ali. Perfiladas. Lá estavam elas. As janelas. O reboco despencando da parede como borras de vela. E amarelas eram elas, as janelas, de um amarelo ardente encardido pelo tempo que transforma a cor em ferrugem, um amarelo amanhecer tardio, como todos os amanheceres de esperanças apodrecidas no decorrer brusco das desilusões humanas.

 Lá dentro, a ladainha dos filhos gritando a fome, o choro de quem chora desde a hora em que nasceu, o enroscar dos corpos que buscam no sexo a agressão mais fácil. Num canto abandonado de um quarto, na cama, um corpo de mulher violentado mais uma vez pelo tempo do prazer do outro. Encolhido o corpo chora, todo ele. Num ponto daquele corpo o pensamento da mulher desvenda no telhado, no mofo das paredes, nos fundos imemoriais do sentimento, a sombra deformada de um homem, capaz de seduzir seu desejo, remexer seus caminhos grutânicos, até desatar os fios do labirinto, onde desvencilhar a trilha é mais se afundar no emaranhado da dança, do ritual do ir e vir, da  ida prolongada, da vinda advinda em curvas e sucessivas paradas. Debulhar do ventre. Ventania traçando atalhos.

  Aqui dentro, a miséria me consome os anos, os sonhos, os planos. A miséria corrói minha alegria, estou presa, fincada nesse espaço de detritos improvisados e destroços. O cupim corrói as estacas do telhado, e o meu pensamento, não fosse o peso dessa crueza, desse desnudo convívio com as famigeradas fomes, insaciáveis sedes, levitaria. O meu pensamento, não fossem as porradas salariais no final do mês, levitaria. Há embate entre o que me cerca e em que me constituo. Insana, espero apenas a hora de enlouquecer e enlouquecerei, decerto.

Lá dentro, os sonhos com casas grã-finas, os meninos na escola com fardinha certinha e tudo. O fuxico cochichado, o mundo virado, a filha de zumira transando direto com os home lá do batalhão, menina boa, nova, boa de se aproveitar, pra você vê, é fim de mundo, disconjuro, num tá vendo o irmão de pépe, aquele que morreu de tiro, filho de mira do finado raimundo aleijado, que morreu atropelado, menina, pois é, o irmão de pépe agora deu pra sair pra cima e pra baixo com os picudo da cidade, lava carro lá no centro só pra tapear os besta, diz que é com juiz, delegado, advogado, vereador, dono de loja, pensa que engana.

Mulher de seio pendido até o outro lado da calçada, amamentava um gato. Cinzas, remotas senzalas, filho no parto partido do tempo/ parição alheia de areia e pó/ arribação de findo no fundo do poço/ aborto/ filho partido/ era precisa/ inda é preciso/ parto no tempo parição alheia sustentada pelo leite branco do meu peito negro/ meu filho não foi parido/ foi parado/ empurrado para a morte na liberdade da não vida. Arribação do filho ventania. Venta o ventre no vento do pai pai vento. Meu filho não veio pra festa/ tarde se destina ao útero intruso da menina sem trilho/ sem filho, mãe dos gatos da calçada acorrentada na pré-história das misérias. Filicidas. Infelizes.

E lá estava ela: Elisa. Melancólica com suas cólicas matinais. Tênue. Inócua. Lânguida. Elisa. Lisa como o nome. Limo. Mona. Nada. Limonada de lima. Nada em Elisa era intenso. Nada denso. Os espirros sonolentos e porosos. Preguiçosos. Elisa escorregadia. Vadia de brisas. Nebulosa. Elisa. Menina leiga em quase tudo. Magra. Meiga. Maluca de vidro, vidrada em perucas loiras. Mas, em Elisa, nada fascinava mais que os lilases olhos de claridade branda. De Elisa os lilases olhos. Olheiras afundadas num lilás breve e leve como a brevidade grave do riso liso de Elisa. Olhos de Elisa pintados por Lésbia com lápis de cor. Ela saía todos os dias antes do sol raiar e vinha batendo canela do Canela até aqui, ela e suas finas canelas de sabiá e o seu estojinho de lápis coloridos, além da borracha de desenho verde, apropriada para apagar as magras mágoas de Elisa, a pintura mais suave do lugar. A musa dos cartões de Lésbia, vendidos, por bagatela, nos bares dos meninos revolucionários. Menina de olhos melancólicos e cólicas lilases. Elisa. Elipse.

A subversão do fuxico fluía. Nas janelas, as mulheres trocavam receitas, ervas pras feridas do corpo que as do peito, não, essas não têm cura, têm remédio pra acalmar, pra adormecer, mas cura, a dor do peito não tem. Simpatias pro marido deixar a bebida, posições, chás pro mal do útero, preces pro amigo que partiu pra guerra e ainda não voltou, pragas malsinadas pela sina da amiga leal que traiu, remédio pra menarca da filha mais velha que ainda não veio.

O boca a boca da vida de cada uma começava a cutucar, a futucar o outro sexo. Bate boca, bafafá, forrobodó, quizumba, levanta poeira, eram armados também por elas, que já não esperavam tanto nas madrugadas. Cada “loneta” era trocada por um corno bem dado, às vezes por abandono, ou porradas revidadas, poucas conseguiam dos parceiros ouvir palavras, saber os pensamentos que bóiam na superfície do cérebro, a conversa era a fúria crescente, o grito e a ameaça da força, a imposição do medo. Mas as mulheres das janelas amarelas persistiam. A rua já não continha a vertigem da embriaguez, saíam às ruas quase sempre lúcidas, quase sempre certas, quase sempre com suas trouxas enormes nas cabeças, a filharada ajudando, mas já não surgiam como sempre, quase sempre grávidas, mesmo as mais jovens surgiam com o domínio do corpo, não se deixavam castrar, não se deixavam violar, eram Senhoras. Armava-se a confraria das janelas, com a adesão de meninos que aprenderam a falar, a ouvir e sentir, desde o útero, as dores das mães, com a adesão de meninos crescidos que se fizeram homens com o barro soprado pelo macho, pelo senhor, mas que apesar do medo, apesar da perdição repentina, do trono dividido, quebrado, extinto, viam, ouviam e sabiam usar a linguagem, usar o verbo. O outro sexo apavorado.

Orelha de pau aqui, ali, acolá. (orelha de pau é ornato do imaginário de crianças que, como eu, viveram num tempo onde crianças brincavam de roda, falavam com mato, com grilos, árvores, borboletas amarelas, bicas, jacas, bananas, burros, jumentos, terra, avó, barro, cacau, pirão de água com tomatinhos do quintal, primo badico, tia caquinha louca no corredor nefasto do casarão, dona romana cega costurando no escuro, itapitanga - pedra vermelha.). Orelhas de pau, pirongas, urupês, uns e outros, fulanos, sicranos. Golpe. Descobriram a fruta vermelha, buscaram documentos, depoimentos forjados, fotos nos jornais, nas gavetas, testemunhas foram compradas, de tudo, em silêncio, fizeram para que, no lugar, o cenário e as mulheres retornassem ao que eram antes, antes de... antes de quê... antes de quem?

Decidiram por Anita. A hóstia, a vítima oferecida em sacrifício à perpetuação da espécie. Anita. Negra. Seu ofício? Extrair cutículas, escolher os esmaltes mais vivos e escandalosos, enquanto cantava velhas cantigas, enquanto distribuía pitangas entre as freguesas que ofereciam as mãos em concha, só pra ouvirem as palavras da boca carnuda e louca de Anita:   “Guarde o meu anelzinho bem guardadinho”. Era a radiante Anita revelando com um sorrriso um pensamento solto que chegava. “Ser amada é possível, amar é possível” - e sorria da brincadeira da infância perdida. “A felicidade é possível, viu? A fidelidade - gargalhava- pelo puro prazer, pelo simples querer, é possível, o fim dessa miséria que nos consome os sonhos também é possível” - sorria. Mas havia aí uma tristeza surda, escondida até de Elisa.

No princípio do fim, havia um cheiro de risco, arrepio de pêlos pelo corpo, um grito vindo com os ventos, balançando as janelas, derrubando as panelas prateadas que brilhavam ao sol, as roupas alvas estendidas no matagal secavam na rapidez da ventania, as crianças já não brincavam de roda, já não choravam por nada, no lugar, a tristeza calada, o mau agouro, nos passeios das casas as comadres não mais contavam casos pros netos, as vizinhas já não sorriam, já não xingavam, tudo parecia prenúncio de um canto nefasto que viria inabalável com o vento. Janelas fechadas, mulheres pintaram todas as casas do amarelo mais áureo que encontraram. O canto que se ouvia era o lamento murmurado por dentro de todas elas.

Numa noite qualquer, num tempo guardado num canto esquecido da história, noite em que Anita colhia as melancolias que pingavam da boca de Elisa e não havia disparidade alguma nos olhos que se encontravam e se moviam, sem buscar entendimentos, sem bruscas buscas, olhos que se sabiam mútuos, que se perderiam no decorrer dos ponteiros. Presas as mãos, Elisa sentia o calor da mulher que amava. Anita se integrava às olheiras profundamente fundas de Elisa. Anita chorou e partiu arrancada das mãos de Elisa. Porta arrombada, os homens queimaram as cartas de amor de Elisa, os discos de Anita, os livros de Elisa, os risos de Anita, os homens queimaram os girassóis plantados na porta da casa, queimaram a casa e levaram Anita.

Nos dias que antecedem o meu aniversário, a solidão me pesa mais forte, já não pertenço às janelas amarelas, estou vaga e habito a vagueza mais vaga que há: a Rua. Evito os ventos, já não choro, tenho medo dos relógios, tenho medo de tentar voar e não mais saber bater as asas. Ainda me alimento de pitangas e falo coisas presas na memória, de livros lidos, de dores tidas, e uma voz me vem do fogo que move a minha escrita, a minha vida. As sementes do fruto vermelho entranharam-se nas rachaduras das calçadas silenciosas. O meu olhar é nítido como os girassóis de Van Gogh e os versos de Cora Coralina: de pedra. Persigo a revelação da imagem impressa na cena. E me integro a ela.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         Foto: Patrícia Navarro/Igatú-Ba.

3 comentários:

  1. Querida amiga,

    Na fortaleza das palavras, a áspera verdade dos tantos casebres em que das suas jenelas debruçam as tantas Elisas do nosso chão...
    O teu olhar pincela o quadro que colore este tempo em que as janelas espiam o mundo...e tem a mesma dor dos girassóis de Van Gogh.


    Beijos,
    Genny

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  2. Esse teu texto é tão forte, tão denso que me deixa quase sem palavras! Já vim aqui várias vezes, lí-o, relí-o e continuo meio muda. A tua sensibilidade para retratar a dura realidade dos cortiços, favelas, amontoados humanos instaldos nas periferias das cidades é de quem
    conhece de perto e de dentro o amarelecer dessas criaturas. E mesmo assim nos transmite
    beleza e muita poesia! Gosto demais de tudo que escreves. Obrigada, querida!

    Beijosss

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  3. Rita, teu texto nos remete a um espetáculo. As palavras, as pausas, a raiz, o tempo. Você, por si só, é um espetáculo. Um Forteabraço!

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