segunda-feira, 9 de maio de 2011














 COLCHA DE RETALHOS
                      Rita Santana


“Minha solidão já está pronta
para queimar quem a queimará.”
Louis Emié


A posse da subjetividade tácita no recanto das suas grutas nunca invadidas, no minar dos códigos em gotas, em sinais, em vertigens. A ordem se consumindo, se consumando. A desarrumação íntima da ordem. Sempre fui assim taciturna e vaga, assim dispersa, rarefeita nos pensamentos, de longos vagares, longe das pessoas, longe das vozes, longe das vestes. Mas sempre perto e presente. Inda mais na casa, ao chegar da jornada lá fora, onde minha palavra, que vem de dentro, e se expõe original e fiel à sua natureza de palavra oriunda de mulher, se depara com a palavra vinda de fora, construída com a concretude do exterior, feita forte sem adentrares mais atentos. Luta persistente, onde me desgasto, me renovo, me fortifico. E, com a casa, presente na pele, na mente, e presentificada sempre, lá ou cá, na minha paz de amor por ele. Só me sentia ausente, na ausência em que o outro não cabia em mim, em meu tempo pessoal, indivisível, interior, impartilhável, onde a natureza de gente destitui-se por completo do outro e silencia-se em si mesma, onde o estado de solidão inerente se manifesta, em meio à festa dos rituais do só. Naquela hora da impossibilidade plena do outro. ERA A COLCHA. Às vezes umas vozes vizinhas me vinham. Era a colcha de retalhos. Era a colcha de fuxicos, de fiascos e fagulhas. Era a colcha obscena, absurda. E foi? Era a colcha creindeuspaicriatura! Era a colcha do diabo. Era a colcha de princesa toda azul de seda. Era a colcha. A colcha dos retalhos de cada homem. E era um homem entre suas coxas, no arremesso final das carnes duras de madeira ebânica, danada, era um homem entre suas coxas, penetrando teso seus tecidos fechados, agulha prateando a vitória da posse tomada, tocando pés, enredando partes, arrematando pregas, embaraçando linhas. Eram dois, eram dez, eram tantos, eram todos, quantos eram? tantos outros, outros tantos e tantos e tantos e tantos e tantos e ela tão deles todos, formando a pictórica posse dos possessivos. Ela minha, ela nossa, ela vossa, ela tua, ela sua, ai nossa! todos com ela no tresloucado transcorrer tranqüilo das horas, lá nos cantos dela, no colo dela, deles era ela. ERA A COLCHA. Amadurecera o tempo. Sentia-me pronta para restituir-me em minha história com os cacos guardados, acordá-los do hibernar profundo de historicidade arquivada, reativar as vidas da minha vida, no mosaico dos trapos, dos farrapos, na coalescência dos mundos imersos em mim. Era tempo maduro de reconciliação. ERA A COLCHA.

Queima-se um pedaço na fogueira ardilosa do ciúme, incendiando-se na noite primeira. Era noite.

Apaga-se uma faísca da sua memória. Primeira manhã.

Queima-se outro pedaço e outro e outro e tantos e tantos nos ângulos obscuros das noites em que ela dormia.

O desespero dela na luta noturna contra o fogo devorando nomes e pinturas, o terror dos seus sonhos em sombras do passado ossificado na pele. Queimaram-se todos, e ele, sorrindo entre fiapos trêmulos, sorrindo na fumaça dos ossos incinerados. Até restar o vazio e ele. A normalidade do lar se instalara novamente, a paz desejada por ele na ordem e no progresso do casal, o resgate final do sebo do amancebamento. Nela, um nada se acomodara desde então. Onde a fibra da luta nas palavras? onde suas implicitudes? onde o amor? onde a mulher? O nada dela se apoderou. Ela não sabia da inquisição de sua vida na fogueira do que se chama amor, não sabia da ordem, não sabia da traição noturna cotidiana. Não sabia. Ela agora só vivia do porvir, mulher sem passado. Apagada a lembrança mais vaga do ontem, do anterior. Mulher só de futuro, ou só de hoje? Seria permitido aos seus passos débeis o prosseguir? Não. O futuro também seria eliminado, pois também ele ameaça rebentação, corrosão das rochas, brotar do novo broto, negação da ordem. Era preciso preservar a normalidade da casa de hoje, do amor de hoje. Lugar sagrado na casa de agora, no corpo da mulher de agora, sem retratos. Ele, o dono, o trono, o único, o último. Era preciso eliminar qualquer vestígio do prosseguir, qualquer pista do amanhã. E vi: ERA A COLCHA. Entre as frinchas do sonho que me perseguia as noites, o abrir lento da gaveta. O apossar-se do pano na contração da mão. O aproximar-se da vela (acesa para qualquer santo ou demônio que me afastasse os pesadelos que me vinham). E, num instinto de conservação, erguida, disse o seu nome e um não. O último eu mesma hei de queimar. Era a ordem. Galopava em mim a solidão com a sanha de quem se sente queimar, e em passos pesados e lentos eu caminhava, chegava perto. Pé e pé no passo do tempo. Os olhos do outro, gelados, desconhecendo, interrogando, perdendo. E a mão que uniu os retalhos, o último queimou. E a chama a consumir, a consumar. Vi um homem se decompondo em cinza. A vela apagou-se. O sol iluminou o lado oposto do quarto, amarelando a cama, e lá: A COLCHA. Ajuntei o pó, com as mãos em concha espalhei-o na colcha e sacudi tudo na porta da rua e o vento varreu.






Foto: Edgard Navarro


4 comentários:

  1. Concha de retalhos que ao invés do mar
    da para ouvir sua voz.

    ResponderExcluir
  2. Você escreve lindamente.

    Fernando Karl

    ResponderExcluir
  3. Presença do outono

    Devia ter dito te amo
    Mas estava o outono fazendo sinais,
    Cravando suas portas em minha alma.

    Amada, tu, recebe-o
    Vai buscá-lo, transporta a tua doçura
    Por sua doçura-mãe.
    Vai buscá-lo, vai, outono duro,
    Outono suave em quem reclino meu ar.

    Vai buscá-lo, amada.
    Não sou quem te ama este minuto.
    É ele em mim, seu invento.
    Um lento assassinato de ternura.

    GELMAN, Juan. Amor que serena, termina?. Rio de Janeiro: Record, 2001.


    O Falcão Maltês

    ResponderExcluir
  4. A Mulher, que sonha, que conta, que canta, que encanta. A Mulher que aprende, que ensina, que luta que vence. Mulher de Venus, Mulher de Marte, Mulher de Saturno. Mulher de corpo, de alma, de mente. São tantos tipos, tantas cores tantos sabores, tantos medos, tantas dores. Toda mulher é unica, e todo homem deveria saber disso.
    Toda mulher deveria sacudir da porta pra fora as cinzas de suas desilusoes drastica-amorosas.
    O que voce fará com a sua Colcha depois de sacudi-la da porta para fora?
    A minha, guardarei nos fundos da casa, enterrado abaixo de um pé de jasmin rosa, para que daqui a alguns anos, ter em mãos a prova de tudo aquilo que sou hoje.

    ResponderExcluir