terça-feira, 12 de abril de 2011


        




          A ESPERA DE ROSITA LORCA
                                      Rita Santana




Eu sou Rosita e espero. Sentada. Pernas afastadas, pés fincados no chão, cotovelos amparados por joelhos aborrecidos e mãos alicerçando um conjunto rústico de tristeza. Queixo em queixas murchas, rugas cansadas, e olhos compondo um mosaico de suspiros. Trago um leque de rubras flores espanholas, furtado entre as relíquias cênicas de Margarita Xirgu e um chapéu. Ah, o chapéu! parte mais linda desse figurino improvisado. Um chapéu preto-francês, do século XVIII, com abas acanhadas e sinais imperceptíveis de alguma traça desgraçada. Traz um cheiro das antigas cantigas provençais, talvez tenha sido o preferido chapéu de alguma ribeirinha portuguesa do século XII e, para meu encanto maior: uma flor de feltro assustada e chorosa pertencente, pelo sensualismo desmilinguido, ao século XVI, mas (e isso eu posso jurar) confeccionada no auge de uma guerra civil do século XXIII, por um saudosista aposentado pela invalidez dos sonhos. Invalidez total dos sonhos. Mas, eu sou Rosita e espero, vendo o trem passar pela Rua da Linha em preto e branco. É a minha velha Ilhéus que canto nesta hora, vendo a escassez das casas, das cores, e o atiçar da fumaça embaraçando a vista. Sentada espero. Vejo os coronéis escondendo a cara na cara dos capangas que arrancam a menina de sobre os leões brancos da praça. A velha Rosita ainda espera, com a doçura desesperada de quem, na ausência, aprendeu o verbo amar em todos os tempos, conjugando-o de um só modo: espero. Indicativo. É dia claro agora e eles voltam, plantam na praça uma carcaça que chamam mulher. Condenada pelo tempo que destrói os que não têm raízes. Ferrugem impregnando o ferro na cólera coletiva silenciosa. Chuva. Pedra. Pânico. Povo. Urbis. A dama me olha, não suporta, cai. Voltam os coronéis mascarados de projetos postais, coisa e tal, e quebram a praça inteira, só não morro pela espera. É o novo que não entendo jamais, e ele não quer a velha Rosita sentada de pernas abertas. Onde os leões das crianças do meu tempo? Banquinhos das suas chácaras particulares. Praça? Pombo? Pedra? Povo? Passado. Os namorados se perderam no tempo, no encontro da praça desfeita, desencontro na praça, desencanto. Eu sou Rosita Lorca e tenho me arrastado no tempo, atravessando castanholas e bandolins, pandeiros e berimbaus. Ainda ontem, Chico Buarque de Holanda convidou-me com aqueles olhos, olhos de, olhos - ai minha nossa senhora, valei-me minha santa rita dos impossíveis, perderei o fio da meada - olhos do noivo que se quer ter, para o seu aniversário cinquentista. Hoje não posso, meu querido Chico, estou esperando quem só eu sei esperar. Amanhã, quem sabe, ele chega e eu dou um pulinho aí, com o meu chapéu pintadinho de novo, a flor de feltro mais alegrinha e o leque mais leve. Enquanto isso, Chico Querido, fico esperando. Espero. O meu passa-tempo preferido é ver o tempo passar.





(Conto do livro Tramela/2004)

8 comentários:

  1. Rita! que conto incrível! Nem sei bem se um conto, um canto, ou uma crônica maravilhosamente
    triste ou tristemente maravilhosa(o)! Como escreves bem, MULHER!Fiquei emocionada, francamente... tua pena é afiada e certeira e faz sangrar...!
    Sem mais palavras...

    beijos

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  2. Cirandeira, ele faz parte dessa leva de primeiros contos do livro Tramela publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado (editora Casa da Palavra), ganhador na categoria Contos do Prêmio Braskem de Literatura para Autores Inéditos/2004. Saiba que suas palavras (tamanha a delicadeza da sua subjetividade revelada no seu blog) tomam conta do meu espírito. Sinto-me uma borboleta. Beijos!

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  3. Eu já delirava de prazerosa loucura, esquizói-demente multipartido pela tarefa de seguir as pontas do chapéu a beliscarem presenças polvilhadas por um singelo período de onze séculos, quando eis que o andor cai e espatifa-se o santo barroco/barrento com a intempestiva entrada em cena desse senhor magrelo dos olhos de ardósia.

    Eu devia ter desconfiado. Moças que esperam é com ele mesmo. Rosita é só mais uma vítima na lista em que já (des)esperam Carolina, Januária, Benvinda etc.

    E nada mais direi. Prefiro usar palavras do próprio bruxo angelical, a fazer com que o feitiço vire contra o feiticeiro:

    'Minha voz ficou na espreita, na espera,
    Quisera abrir meu peito, cantar feliz
    Preparei para você uma lua cheia
    E você não veio, e você não quis.' (Lua cheia)

    ou

    'Espere sentado
    Ou você se cansa
    Está provado,
    Quem espera nunca alcança.' (Bom conselho)

    Sem mais o que esperar, dona Rita (que levou os meus planos, meu pobres enganos, os meus vinte anos, o meu coração, e além de tudo me deixou mudo um violão),

    Cordialmente, o seu

    Pedro Pedreiro Penseiro
    (...esperando o trem/ Manhã parece, carece de esperar também/ Para o bem de quem tem bem/ De quem não tem vintém...)

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  4. "A Espera de Rosita Lorca" é um pouco de rio e mar e uma fonte de água pura que temos guardada em algum lugar.

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  5. Pedro Pedreiro Penseiro, acho que Rosita gostará de saber dos seus pensares sobre ela. De qualquer forma, ela continua por lá, na velha Ilhéus sentada na praça. Luana acertou em cheio nos olhos de ardósia! Parece que Chico e Rosita têm, é verdade, velha amizade, mas não é ele o objeto amoroso da moça. Quem sou eu para dizer? Rosita é muito reservada. Beijos sempre admirados pela sua criatividade e poesia. Adorei!

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  6. Débora, a água é um bom elemento para ligar ao conto. Lorca e a sua Rosita são grandes paixões.A sua beleza e sensibilidade estão sempre perto de mim. Um abraço cheio da canela e do cravo e da música que maio nos reserva. Até lá!

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  7. Bela cronica, belas palavras, esperarei e voltarei.

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  8. Está certo, Renata! Que a espera seja breve. Obrigada pela visita e aguardo a sua volta.

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