terça-feira, 1 de fevereiro de 2011












                                 VAMOS DAR UM TIRO NESSA CONVERSA?!
                                                                                              Rita Santana



 Retomei as leituras de um tema pelo qual sou completamente fascinada: o amor cortês no universo medieval. As convenções amorosas eram seguidas de acordo com um código preestabelecido e o amor era uma aprendizagem. Aliás, o amor é sempre uma aprendizagem. Não nascemos sabendo amar, aprendemos a amar. Às vezes precisamos desaprender o amor para que ele sobreviva às nossas construções. 

O amor cortês deixou muitas heranças para o mundo moderno. Cogita-se que a serenata tenha a sua origem naquele tempo porque os poemas eram cantados, chamavam-se cantigas. Sempre que uma mulher sentir-se Senhora/ Dona na relação, sentir-se adorada pelo seu amor, estaremos revivendo aqueles tempos de cortesia e vassalagem amorosa. O amor no Ocidente tem como base e modelo o amor cortês, segundo Otávio Paz.

Assisti apenas ontem ao belíssimo documentário José e Pilar de Miguel Gonçalves Mendes, e atentei para a quantidade de vezes em que ele, José, aparece beijando a mão da mulher amada, Pilar. Saramago surge como um homem que além de saber beijar as palavras, sabia beijar a mão da sua companheira – e repetidas vezes.  Coisas assim, simples assim e divinas! 

Passeando por alguns sites, li dois textos cujos fios colaboram com a minha teia. O primeiro é A difícil comunicação amorosa. O tema sempre me atraiu profundamente, por razões óbvias: sou mulher e acho difícil pra caramba dialogar com os homens. Segundo Regina Lins, algumas escolas estrangeiras começam a valorizar a educação sentimental, a educação amorosa. A autora parte da dificuldade que muitos casais têm nos relacionamentos afetivos e, a partir daí, aponta as queixas de muitas mulheres quanto à dificuldade masculina para o diálogo. Os homens queixam-se do mesmo mal.  

            Acho que a nossa dificuldade de entender o funcionamento – esquisitíssimo - dos sentimentos masculinos também existe, mas existe por pura Ausência. A ausência de uma aprendizagem da delicadeza. A ausência – principalmente na formação dos homens - de uma aprendizagem da sensibilidade, do afeto, do respeito ao outro e, principalmente, a lacuna que existe na educação masculina para o diálogo, o argumento, a troca. Aprender a não precisar impor ao outro o seu domínio de macho, histórica e culturalmente aprendido e muito bem internalizado, inclusive com a colaboração das mães.

Quando eu e as minhas irmãs conversávamos com o nosso pai e ele, diante dos nossos argumentos, começava a ficar nervoso, minha mãe encerrava a discussão dizendo: vamos dar um tiro nessa conversa?  A mulher também não foi formada para dialogar, argumentar, expor. 

Precisamos aprender a conversar com o outro sem atirar no diálogo, sem matá-lo. Demonstrar nossos sentimentos, angústias, nossa forma de interpretar os acontecimentos, segundo a percepção de cada um. Aprender a ouvir e aprender a falar. Aprender com o outro. Reavaliar a necessidade (aprendida) de dominação, de querer convencer e impor a sua visão através da força, do grito, da impaciência e, por vezes, do desprezo.   
     
O texto sinaliza para as disciplinas História e Literatura como espaços onde se desenvolveriam monólogos interiores de alunos, através da troca de perspectiva. O aluno assumiria diferentes papéis de personagens da história e da literatura. Exercícios que já praticamos, mas que podem ser planejados com esse objetivo e não apenas nessas disciplinas. Então teríamos o exercício para a alteridade, para a sensibilidade e a descoberta das razões do outro. Exercício que pode ser feito também no cotidiano das relações. Por que não? Colocar-se no lugar do outro.

            Segundo a autora, nos Estados Unidos e na Califórnia algumas metas para o ensino médio são: desenvolver a competência emocional e social dos alunos, sensibilidade ao outro, autoconhecimento, intuição, imaginação e o conhecimento do próprio corpo. Coisas fabulosas e negligenciadas! Sempre acreditei que a arte, a poesia, o cinema, a pintura, a música e a literatura pudessem contribuir com a realização desse sonho, e podem. Investir na autonomia salarial da professora e na sua formação pode ser um grande passo em todos os sentidos.  

Pra finalizar, sugiro a leitura do segundo texto intitulado Difícil arte de ser mulher de Frei Beto. Hipácia é a personagem histórica escolhida para a sua reflexão. Segundo o autor, ela foi uma mulher que viveu na Antiguidade, se destacava como cientista (astrônoma, física, matemática e filósofa) e que trabalhava na biblioteca de Alexandria. O seu pensamento filosófico libertário amedrontou os homens da Igreja e a mando do bispo Cirilo, posteriormente canonizado, foi esfolada e queimada. Frei Beto vê a castração das Hipácias na atualidade e também discute a formação masculina, apontando saídas como: solidariedade e não competitividade, doação e não possessão.  

Até hoje amedrontamos muitos homens que veem na nossa construção intelectual, artística e profissional, mas principalmente, na nossa aprendizagem argumentativa e lógica, uma ameaça a sua hegemonia, ao seu poder, ao seu lugar estabelecido nas relações e, por isso, continuam simbolicamente tirando a nossa pele, calando a nossa voz, desprezando e ignorando nossos discursos (até em mesa de bar). É só prestar atenção à invisibilidade que a mídia brasileira está construindo em relação à nossa presidenta Dilma. Mesmo quando ela aparece, é em recortes precisos onde qualquer empatia com o público fica inviável. Atentem às edições. A inquisição agora é de outra natureza, o fogo também é midiático. 

Não queremos reeditar os modos da cortesia amorosa medieval, mas alguns cuidados com o amor, sempre serão necessários. Exercitemos hoje, juntos, a relação dialógica sem que precisemos dar um tiro em qualquer conversa. Que as nossas Hipácias continuem vivas. O que proponho, além da leitura e reflexão desses dois textos? Que comecemos com os nossos monólogos interiores e depois o de sempre: 
    
 - Vamos discutir a relação? 


3 comentários:

  1. Rita, ler seus textos é como mergulhar. Mexer na água que nem sempre é límpida e tranquila é algo tentador e perigoso. Você é corajosa, não tem medo de arriscar ou tem,... mas vai fundo.
    Carinho
    Luci

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  2. é bom te ler, Rita, assim, poeta e mulher, tomando as dores - e como dói - desse gênero tão solitário(bicho esquisito, disse Rita Lee),
    que até há pouco era invisível e, agora, se obriga a endurecer, no enfrentamento do mundo
    dos homens, que, vc o diz e com razão, é Inquisição, fogo de ferida braba, homem/mulher, essa chaga bipartida que não cicatriza.
    um beijo admirado, Rita!

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  3. Ritinha,
    F-A-B-U-L-O-S-O!!!! Muitos bjs e continue enchendo nossos dias de poesia!!!!
    Mônica Franco

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