domingo, 26 de dezembro de 2010

        


                                EU NÃO ESTOU BLINDADA
                                                             Rita Santana

          Durante uma entrevista à TV Bahia, o secretário de Segurança Pública César Nunes, questionado sobre as ações a serem tomadas para evitar a violência no Estado - cuja população encontrava-se assustada com a morte das duas meninas decapitadas e a morte do menino Joel assassinado por policiais enquanto se preparava para dormir - respondeu que as ações deveriam ser de toda a sociedade. Escola, família, igreja, enfim, todos teriam responsabilidade com a redução da violência no nosso Estado. A impotência diante de um quadro cada vez mais amplo de violência parecia presente em sua fala.

          Penso nas imagens divulgadas sobre nós baianos e nordestinos o tempo inteiro na televisão. Imagens acintosas e caricaturais nos programas de humor, nos telejornais e nas telenovelas. Somos aviltados frequentemente na nossa identidade, nas nossas peculiaridades identitárias. Ainda insistem em ignorar os estudos sociolinguísticos e a diversidade cultural que há no país, para continuar inserindo estereótipos que contaminam e formam opiniões, conceitos e comportamentos adversos em relação a todos nós. Por que estranharmos a manifestação da estudante de advocacia Mayara Petruso e dos internautas que manifestaram xenofobia contra os nordestinos após o resultado das eleições? Não consigo apartar tais atitudes da cotidiana agressão que sofremos pelos meios de comunicação de massa.

          Quanto à eleição presidencial, alguém já parou pra pensar na repercussão dos debates na população? O candidato José Serra ignorava que estava diante de um público leitor e eleitor, diante de jovens cidadãos. Dilma, cujo tom do discurso inicialmente foi até mesmo tíbio devido à inexperiência de palanque, foi obrigada ao longo da campanha a tornar o seu discurso mais ofensivo e reativo. O candidato, no entanto, não tinha limites na sua estratégia de ataque.

          Estamos vivendo os nossos primeiros tempos democráticos, portanto, há que se cuidar da ética, dos princípios de civilidade e respeito ao outro para que tenhamos uma sociedade menos violenta, mais educada. Não parece haver nenhuma relação entre o caráter ofensivo da campanha e a violência urbana instalada, mas eu vejo claramente um elo. Quantos colegas de trabalho, amigos, opositores políticos não nos enviaram e-mails vergonhosos sobre a candidata? O estupro simbólico daquelas mensagens preconceituosas contra a esquerda, contra a mulher, contra a sua história de resistência política, contra a política de inserção social. Tudo aquilo era deprimente e ofensivo demais.

          A selvageria de jovens da classe média na Avenida Paulista revela a sanha dos homofóbicos. O mesmo pensamento está nos discursos de professores quando afirmam que homossexualismo é coisa do demônio porque Deus fez o homem para a mulher. Simplista e ingênuo demais para educadores. O respeito às diferenças deve ser estimulado naquele ambiente pedagógico. É preciso aceitar o Outro. Aceitar as religiões de matriz africana. Formar cidadãos de todas as etnias que respeitem o negro e suas tradições, seus rituais religiosos.

          Assim, não assistiremos novamente a episódios como o da senhora Bernadete Souza Ferreira - uma Ialorixá de Ilhéus - que foi jogada num formigueiro, aprisionada e torturada por policiais. Qual a etnia desses homens que zombaram do seu transe religioso, da sua religião, da sua origem? Qual a etnia dos policiais que mataram o menino Joel, morador do Nordeste de Amaralina? Qual a formação que tiveram sobre isso na escola e na família? É daí que parte a minha reflexão. Quais os programas e telenovelas que assistiram? O que dizem os seus pastores na igreja, na televisão? A responsabilidade é de todos!

          Não seria o tempo de vigiarmos os nossos discursos, as nossas piadas, as brincadeiras constantes contra homossexuais? Não estaria também nesse corriqueiro discurso do dia-a-dia a nossa parcela de responsabilidade com tantos atos violentos?

         Frequentei um curso onde tínhamos aula à distância e os nossos interlocutores eram de Portugal, do Rio de Janeiro e da Bahia. Era absurdo o que presenciávamos. Os professores de Portugal manifestavam o seu ceticismo em relação aos professores e historiadores brasileiros. Os professores do Rio ignoravam que houvesse vida inteligente na Bahia e menos ainda no interior da Bahia, que também participava do curso. E provavelmente muitos de nós que estávamos na capital também pensássemos o mesmo sobre os professores do interior. Um emaranhado de equívocos e descaso ao conferir ao Outro um julgamento prévio devido à sua origem, ao seu território.

          Mecanismos de solidificação de uma imagem negativa e desprezível são acionados o tempo inteiro contra negros e indígenas. Estou assistindo à personagem de Cleo Pires representando uma indígena na novela Araguaia. Não sei aonde a trama levará a personagem, mas fico ofendida e tentada a desistir da novela porque me recuso a ver a personagem sendo humilhada, desfalcada de origem familiar, como sempre aconteceu com os negros, e correndo atrás de Solano, enquanto ele dedica a Manuela, interpretada pela atriz Milena Toscano – ideal loiro de beleza – o seu amor sublime.

          Perderam uma oportunidade única de desconstruírem a imagem negativa atribuída ao indígena, através de uma representante belíssima, descendente de indígenas e que está no topo da mídia com o recente ensaio sensual para a revista Playboy, além das personagens que interpreta sempre com muita empatia com o público. Mais uma vez optam pelo óbvio: o triângulo amoroso maniqueísta onde a branca é a heroína que promove o bem e atrai para si todos os atos de nobreza. Enquanto a personagem indígena - historicamente desprezada - é a vilã dos feitiços, do mal, ligada à morte, à maldição, à paixão selvagem em oposição ao amor puro e trespassado por obstáculos, quase platônico, que o herói dedica à outra personagem. A teledramaturgia despreza a história de luta e resistência do povo indígena e os enfrentamentos políticos desses povos no mundo contemporâneo.

          No mesmo folhetim, ainda temos a personagem circense Pipinela, um negro fugitivo da polícia – marca quase indelével nas representações do negro - por um crime que não cometeu. Vi Pipinela interpretado por Nando Cunha salvando a mocinha por quem é apaixonado das mãos de Max, personagem de Lima Duarte, e sendo chicoteado no rosto por ele enquanto estava quase agachado, numa posição de inferioridade e submissão. Simbolicamente aquela chicotada impregna ainda mais o imaginário coletivo com esse lugar destinado ao negro ainda hoje na nossa dramaturgia. Além de ser completamente inverossímil aquele homem forte e jovem apanhar daquela forma de um homem mais velho sem esboçar nenhuma reação, ainda mais por estar em defesa e em presença da mulher amada. Foi o herói da trama interpretado por Murilo Rosa quem o salvou das mãos do seu algoz. Inacreditável e perverso para a imagem do negro num país onde o escravismo deixou tantas marcas.

          As três “jóias negras” da novela completam o restrito núcleo de atores negros. São filhas do casal interpretado por Tânia Alves e Gésio Amadeu. As três mocinhas surgem na novela sempre associadas à sensualidade exacerbada, usando sempre shortinhos – supostamente porque trabalham numa agência de turismo - insinuando e exibindo o corpo a todo o instante, inclusive com músicas que apelam para a sensualidade da mulata, recurso ultrapassado e que deveria ser evitado porque fortalece essa construção histórica sobre nós, mulheres negras. Mais cuidado com a exposição dessas três belas atrizes Cinara Leal, Nanda Lisboa e Raquel Vilar. A responsabilidade social com as personagens e as imagens que projetam é muito grande.

          Aqui na Bahia temos uns programas de televisão onde os criminosos são expostos aos jovens e às famílias de forma sensacionalista. Penso nos Direitos Humanos e no Ministério Público. Corpos e pessoas são exibidos aos olhos da população de todas as idades, acompanhados de gritos histéricos e violentos dos apresentadores que colaboram para a formação de machistas truculentos, mães raivosas que também influenciarão na personalidade punitiva e feroz dos filhos contra os bandidos. Algum cuidado com as crianças que assistem aos programas, com a formação dessas mães, dos pais? Alguém cuida desse conteúdo? Qual o discurso reproduzido cotidianamente para esses estudantes quando chegam em casa na hora do almoço? Isso pode exercer alguma influência no comportamento desses jovens ou eles estão imunes?

          A guerra do Rio de Janeiro veio e completou o estado de horror e impotência. O bombardeio de imagens e notícias atravessa a nossa vidraça! Estamos em pleno tiroteio e balas perdidas cruzam nossas consciências. Senti a alegria do povo que mora nas comunidades pobres do Rio e compartilhei o alívio com tantas pessoas desconhecidas. Sentimos, todos nós juntos, uma espécie de vitória contra o crime. Sentimos uma espécie de orgulho nacional pelo heroísmo dos nossos policiais; vibramos pela coragem do nosso exército. Fomos tomados por um suspiro geral seguido do sentimento de que finalmente a polícia do Rio deu um basta na desordem urbana causada pelo tráfico. Uma ação conjunta entre as forças nacionais liberta a população das ameaças do tráfico, com direito a bandeiras do Brasil e do Rio tremulando no alto do morro do Alemão e tudo. Vitória! Mas vitória contra quem? Vitória contra uma gente pobre e negra que aparece na TV e nos jornais exibindo toda a historicidade de abandono secular, toda a fragilidade política da nossa condição nesse País.

          A imagem divulgada não é do Outro, não há alteridade naquelas pessoas. Somos nós que estamos ali retratados e representados. O povo negro! São nossos alunos, nossos parentes, nossos filhos, nossos vizinhos, irmãos. Somos nós! Não são simplesmente bandidos. Os presídios hoje estão mais negros! E isso não é exercício de retórica! Vi mães e pais negros entregando seus filhos à polícia. Há mais envolvidos com o tráfico e eles não moram nas favelas e não são negros. Onde eles estão?

          Eu não estou blindada! Segundo Sartre, somos responsáveis por toda a humanidade quando fazemos as nossas escolhas. Na África tradicional a criança é educada por toda a comunidade, todos têm responsabilidade sobre ela e sobre a sua formação, não apenas os pais. E para completar, o padre Antônio Vieira nos aponta para um segundo nascimento, necessário a cada dia para que sejamos inteiros: “Ser o maior dos nascidos, enquanto nascido, é pequeno louvor e de pouca dura; ser o maior dos nascidos, enquanto ressuscitado, isso é verdadeiramente o ser maior. Na nossa mão está, se o quisermos ser.” Ressuscitemos!

2 comentários:

  1. AMO A RAQUEL VILLAR!!!

    Acho ela uma ótima atriz, uma das melhores atualmente!
    Desse trio da novela ela é minha predileta!!

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  2. Cinara Leal me impressiona tanto pela beleza, quanto pelo timbre maravilhoso da sua voz. Interpreta muito bem. As três são encantadoras.

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