quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Daniela Galdino escreve sobre o Tratado das Veias/ Poemas







 






"Tratado das Veias, de Rita Santana, é uma obra em que se nota uma fortíssima relação entre o erotismo feminino e o processo criador em literatura, dada a intensidade das nuances poéticas advindas desse diálogo. Numa visão panorâmica, nota-se a recorrência ao caráter mais inusitado das palavras – familiares e estranhas -, agora já convertidas em imagens. Em relação direta a tal aspecto, torna-se visível, nesse vôo por sobre a poesia de Rita Santana, o esforço para demarcar um território governado pela visão feminina, em que o maior desafio está na instituição de uma outra cartografia corporal da mulher associado a um novo tratamento da experiência sexual, amorosa, existencial, logo, humana, demasiado humana[1]"



Ver o texto na íntegra:

http://operariadasruinas.blogspot.com/ 




                                  

                                         FAZ-DE-CONTA
                                                                     Rita Santana



Vem! Aquieta-te em meus braços,
Rompe o meu nome, antes que o caldo entorne.
Quantas conquistas meu barco não viu?
Sou um rio de leito profundo e seco.
Chego a pensar em desaguar no fogo
E evaporar pra um nunca desatado.
Quero nada.
Quero calar.
Quero colares, vindos d’África
E muitos anéis de todo lugar.
O dia inteiro promete ausência,
O meu corpo afunda em apetite morto,
Logo meu corpo de cio constante em palavras vivas!
Dedos existem que me cortam os dentes.
Uma lente de aumento vê um desespero sem fim,
Já quis ardores demais, e não tive tudo.
Fui ficando triste, triste,
E um dia morri.
Meu corpo ficou, pra fazer de conta.





                                     AMÁSIA

                                                         Rita Santana

 


Vem homem, ofereço-te fibras duras
Da doida serpente que me guarda.
De paz sei pouco, dinamito em gritos.
Trago silêncios vazios que adornam as mulheres.
Se quiseres, beijo teu falo, e me ponho a falar
Das coisas que aprendi entre as pedras do rio.
Aproveita o calendário, a oferta das horas,
Diz-me adorar meus seios flácidos, minha embriaguez de puta.
Lambe com disputa asceta os meus meios, meus fundos.

Deixa banhar de olhos os pelos, a jactância têxtil,
Os arroubos de gado livre.
Faço-me de mulher boa, apascentada e morna.
Banho-te, filho advindo das trevas, na cisterna,
No poço fundo e frio dos meus mistérios.
Aqueço teus ossos com minhas carnes cativas
Ao que em ti é arrefecido.

Prometo, eu Amásia, amaciar o teu sono,
Enganar tua vaidade viril,
Avaliar sem critérios teu caráter de macho.
Depois, deixa a luz acesa e corre.
Ergo-me, esquecida de tantos deuses vingativos,
E abro a caixa de Pandora.



                                                    BÊNÇÃO

                                                               Rita Santana


Apeio o peito sobre a saudade que arde a carne,
Sem consolo possível no solo das desesperanças.
Herdei de meu pai pujanças, bravezas,
E de minha mãe a fragilidade animal das fêmeas.
Por isso tenho tudo!
Posso despregar o afeto como macho cansado faz,
Posso abandonar as armas, trêmula, porque morro.
Tenho grandes, pequenos e verdes medos,
Sou mulher de agora, de hoje,
Tenho hábitos de galo e caprichos de galinha.
Falta o dicionário farto em suas doações doces de fonemas,
De raízes, arcaicas presenças de verbo.
Doarei o dia à paz, ao abandono das preocupações.
Tratarei da poesia, minha parceira de demolições e alvenarias.
Quem me dera só ser, sem bruscas mutações,
Mas o corpo oscila na regularidade do ciclo.
Endoideço alguns dias porque virá a sangria
E entrarei no templo das penitências,
Fitando meu Deus com acusações humanas.
Sou esse fruto peco das diásporas,
Minha veemência é minha mordaça,
Assim têm sido meus dias de santa, casta, pacata,
Senhora de um Deus-homem.
Desacato porque sorvo substantivos, substâncias,
Essências de nomes, dores, fantasias.
Desacato porque sou poeta.
Tenho língua de fontelas, hildas.
Sou muito brava para donos
E afeita a clamores de desprotegidos.
Tenho tudo sob meu viaduto-castelo.
Sou rata e rainha.



                            CORAÇÃO DE ARDÊNCIAS

                                                                    Rita Santana

 

Meu coração era um mosaico de ardências.

As palavras latiam, viravam latas,
Lambiam, com apetite, requintes de sonhos.
Eu dilatava toda num parto insone,
Sem provas, sem seqüelas, sem dinamites.
Havia sol no meu verso e eu dançava,
Aflita de vida, mimada de afetos desejados.
Eu tinha um cajado nas mãos e levantava-o aos céus,
Rogando pragas ao Criador
Por ter-me lançado ao mundo, em movimento.
Havia muita dor em meu delírio,
E o campo perdia o verde quando a minha brasa passava.
Seguia o meu farol perdido lá no fim,
Seguia o meu faro, o meu calo,
Seguia uma menina bonita de tantos nadas.
O amor iluminou a parede do meu quarto,
Brincou de pisca-pisca - e nem era natal!
Alguma coisa acontecia no dia-a-dia da casa.
Uma fumaça esguia manchou paredes
E eu chorei calada.
Assoviei uns versos sumidos, miúdos,
No aparente seqüestro dos meus dias.
E, ainda que tarde, disse:
-Vem! Vem atordoado, imberbe, beijar-me até o amanhecer,
Cair cansado em fadiga de neblina escassa,
Vem e provoca-me versos,
Embriaga-me de farras em teus braços de nunca mais,
E depois chega mais, arrisca mais.
Ardo! Ardo como asfalto nos verões do Rio.
Ardo porque sou mulher.
E sorrio fresca, como que ardendo, como que queimando.
Ardo porque enfarto a toda hora,
Sem u-tê-ís, sem confessionário.
Ardo porque, de ordinário, sou flama.




                                              MELÃO DE CERCA
                                                                            Rita Santana

Quando ele veio,
Disse-me palavreados.
Balancei a cabeça,
E banquei na cara um sorriso:

- Nada sei de poesia, moço!
Só sei catar solidão na areia,
E dormir com cavaleiros imaginários.
Como carambolas na cerca,
E apedrejo meninos feios que riem de mim.

Gosto muito é de gudes,
E tenho plantas no telhado.
Cori é homem das gaiolas,
Cora é mulher de versos,
E eu: só peço doces, fados, e violas.

Gosto muito também é de telhas!
E de espelhos!
Aqui e ali,
Vejo moçoila branda,
Raparigas honestas,
E fulanas doidas.
Visto calçola grande, de babado.
Tenho namorado todo dia à porta de casa
Olhando em meus olhos as remelas vindouras.

De roscas, não falo!
Nem de viúvas.
Matheus, Lucas, João...
São nomes de homens santos.
Também esses, não falo!
Sou mulher de calos na língua,
Não sou de arestas.
Enfio dedo em palavras grossas:
Banjo e abelha.

Pirâmides de taipas são uso que faço de moradia.
E, pra terminar, em favela eu não moro.
Deixo sob viadutos meu salvo-conduto de rainha.
E, ainda que não vejam,
Digo pra ele: cala a boca, bem!
Amo o surdo-cego da não fala.
Fala não, bem! Só dorme!
Aí eu amo.



                                                 LANGOR
                                                            Rita Santana




Há sol demais na paisagem.
Moinhos de vento
Atormentam meu dia.
O casario recolheu o rutilar
Da minha vontade,
E eu, à sombra, deitei minha vocação
De campesina.

Minha boca pede água,
Somente meus pés pedem língua.
Tenho cansaço nas veias
De tanto deixar tecidos
Soltos no caminho.

Pescoço dança violoncelo,
Cintura requebra em violinos,
O meu vagar já é tão certo
Quanto a infelicidade dos dezembros.

Vem! Rega meu baixo ventre
Com aquilo que, em ti, é abundância.
Mas não venhas com esperas!
Estou mole, mole.
Quero abrir-me as pernas ao vento.



                             INSTALAÇÃO

                                                         Rita Santana



Não me visitem sem olhos nas mãos
Nem toquem meus ossos expostos.
Sem precauções e recatos, não cheguem!
Estou aberta, em excessos e ócios.

Aqui o azul, que se resguarda em pó,
Testemunha a honradez das mentiras.
Nas compotas de vidro, meus erros,
E no cio da porta, minhas iras.

Adiante se verá o meu passado,
Engarrafado em tulipas amarelas.
As dores nuas gritarão em cofres,
E os amores se amarão nas celas.

No subsolo, preso às certezas,
O meu ciúme queima-se em pavio de velas.
Nas abóbadas, lembranças grotescas
De personas que foram querelas.
Nas sacadas, as donas que eu seria,
Não se sabem vertigem d’outrora,
Riem-se mosaicas,
Féretras senhoras,
E se despedem do salão das liras.


                            JARDIM

                                                                  Rita Santana



Arrasto o tempo nesse objeto rito, amor palerma.
Enquanto tu, fóssil extremado, recuperas eras perdidas,
Beijando outras salivas menos minha, pois se doutra boca.
Menos abjeta, menos pútrida, menos amanhecida tua,
Desde os primórdios edênicos do paraíso,
Latifúndio primeiro, perdido,
Tomado sem leis mais severas,
Senão às do Senhor do tal feudo.

Alcanças as alianças engolidas entre raízes?
E o que me dizes dos véus urbanos das moçoilas
Doidas por furtos de homens alheios?
E os meus meios moles, arrepiando fundos brejeiros,
Aliciando gotas de solidão cáustica?

Oh! Meu Fausto amado!
Leva-me de mãe morta e imprime esquecimento de veias
Nesse meu raciocínio de inocência fingida.
Sou e serei sempre a tua Guida.
Vê que sonho com rezas e deixo a ti o insólito,
Os rituais do medo, dos segredos do verbo.
Deixo a ti, como se possível fosse, meu arrebatamento,
Minha inconstância, minha ambição.
Deixo a ti o querer ser Deus e Diabo.

Abandono, réptil humano e amado,
O meu sol de estrela escriba,
Para ofertar-te as minhas partes,
Meu mundo avesso ao vulgar das gentes, às reuniões sociais.
Abandono a ti, inclemente monstro,
Meu mênstruo de vinhas negras,
Minha falácia de sofista acesa, de tantas verdades não ditas.
Acreditas, acaso, que te amo sem temor nem perdas?
Acreditas na maldita sina-serpente
Que faz de mim
Um arrastar eterno de sonhos e dores?
Bebo dos tais cristais fellinianos,
E vou na nave idílica dos homeros homens de barro,
Lá vou eu, na nave, persona negra de perfil robusto,
Busto empinado, dona do meu desejo,
Inda que doado aos deuses abutres,
Inda que domado por chicotes de cabras machos,
Inda que cedido,
Inda que cansado,
Inda que trêmulo,
Inda assim:
Dona do meu desejo, dona do meu desejo.
Dona de minhas asas.



                                              DESCONFIANÇA
                                                        Rita Santana



Tenho desconfiança daquele que me ama.
Acho amor ato nobre, legado a poucos,
Tarefa de dignos,
Algo assim, de difícil acesso.
Desconfio de quem dorme ao meu lado todos os dias,
Daquele que sabe meus ares fétidos, minha languidez,
Daquele que colhe o melhor das minhas magias
De maga cansada de ser,
Daquele que sabe todas as influências malditas do meu signo.
Cansei-me de esperas vãs
Mas ainda rogo milagres de reconhecimento.
Não quero envelhecer de vez as carnes,
Nem perecer quieta num canto isolado da minha ilha.
O meu namorado às vezes é cego; noutras, sagaz.
E eu, mulher, tentada a maldizê-lo sempre,
Tamanho é o meu querer,
Precipito-me em despenhadeiros em busca de água fria,
Pois que fervo lavas,
Pois que de labaredas dramáticas tenho feito existência.
Fujo ao controle dos urubus, das vespas.
O meu vôo é incompleto e pressuroso, atabalhoado.
Desconfiança tenho dos honestos demais,
E das santas, dos castos, dos bondosos.
Desconfio daquela, diante dos meus olhos, ao espelho,
Dos seus intentos de artista, das suas vísceras dilaceradas,
Do seu talento incapaz de erguer-se em fala,
Daquela mulher furtiva, incapaz de dizer-me caminhos,
Enquanto desodoro as axilas, ajeito o cabelo,
Desamasso a roupa e miro em mim cumplicidade.





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