segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Eu aprendi a te amar

                  Eu aprendi a te amar
Rita Santana


Era sábado! O Bahia disputava a primeira posição do campeonato. Aqui em casa tudo estava em paz. Eu teria que estudar o exame para a estúpida Certificação de professores que seria no dia seguinte. Olhava a janela, mas não contemplava a paisagem, porque o meu olhar atravessava a copa do cajueiro e se perdia no vazio das abstrações. A calma daquela tarde fora interrompida por um carro de som que estacionou a poucos metros da nossa casa. Ouvíamos. O apresentador muito entusiasmado anunciava aos sete ventos o aniversário de dona Rita. Por um átimo insignificante de tempo, pensei que fosse eu a Rita. Mas o meu aniversário fora em agosto e eu nem estava na cidade! O estardalhaço era enorme! Pessoas gritavam, cachorros latiam, o vento dentro de casa parecia compartilhar da novidade e sacudia os plásticos, derrubava tampas de caixas, papéis voavam. Enfim, uma zona! Dona Rita e Seu Jacinto meus vizinhos, até então desconhecidos, tornaram-se os protagonistas dos meus pensamentos.

 O carro de som tocava pagode e música romântica. Tudo provocava um verdadeiro frisson entre os presentes. Foram poucas músicas, afinal tudo era muito preciso e cronometrado, bastante profissional. O apresentador leu para todos os ouvintes a mensagem escrita por Seu Jacinto. No texto, o meu vizinho – agora quase íntimo – confessava o seu amor por aquela Rita, que não era eu. As palavras lidas diziam do amor que sentia, da companheira que era e dos anos que estavam juntos. Coisa simples!

E eu aqui congelada assistindo a tudo, como se tivesse com um radinho de pilha encostado ao ouvido. Pregada em todos os detalhes sonoros, ouvia tudo aquilo com a mesma atenção dedicada a um folhetim, a uma rádio-novela. O meu tempo parou para acompanhar a cena - à distância - sem sair do lugar, sem sequer pensar em sair na porta para ver onde era. Congelei para ouvir e acompanhar tudo. Não movia um músculo. Mas não foram as palavras de Seu Jacinto que suspenderam a minha respiração. O apresentador continuou o seu show com elogios à aniversariante. O coro dos familiares e amigos subia efusivamente. Era uma festa! Por fim, ele ofereceu o microfone a Dona Rita. A minha alma ficou suspensa. E ela disse:

            - Eu te amo. Eu aprendi a te amar.

Não sei se disse mais alguma coisa. Houve um silêncio. Eu era uma rocha. Paralisei primeiro porque ela falaria, depois pelo conteúdo da sua fala. Era na verdade uma situação dramática muito tensa. Imagine quanta exposição para pessoas que nunca pisaram num palco, nunca se transformaram em sementes e jamais souberam da Couraça Muscular do Caráter. Pessoas de corpos duros e personalidades rígidas. Pessoas comuns que não freqüentavam teatro, que desconheciam a quarta parede.

Todo o público naquela hora entrecruzou olhares. Certamente houve um coçar a cabeça pra lá, um virar as costas pra cá, risos furtivos por toda parte. E Seu Jacinto, coitado? Cabisbaixo, soturno, riso forçado, olhar de peixe morto. E se tem algum tique nervoso, pronto! O canto da boca pôs-se a tremer! A ficha caiu, Jacinto! O apresentador, certamente, teve que se recompor. Silêncio! Eu aprendi a te amar era uma retificação pública do seu amor. A ocasião não pedia confissões mais íntimas ou sinceras, Dona Rita! Entretanto ela o fizera! Era só seguir o protocolo implícito do ritual: eu te amo, eu também! Pronto! Eu me sentia um pouco constrangida por ela e por mim, mas também por Seu Jacinto.

O pior é que o eu te amo fora pronunciado com formalidade, num tom oficioso e entrou em nossos ouvidos ainda com a carga do susto, da surpresa e da comoção daquela Rita no meio do picadeiro armado na porta da sua casa.  E imediatamente depois de pronunciar a primeira frase, ela parece ter recobrado a consciência da sua declaração e disse com determinação e força: eu aprendi a te amar! Fica difícil precisar sem ter visto a sua fisionomia, mas a carga dramática da fala não deixava dúvidas. Após o eu te amo trôpego, a voz retomou o discurso com um tom forte e implacável: eu aprendi a te amar. Ênfase no verbo! Força que somente as mulheres que recobram mágoas poderiam fazê-lo. Eu estava estupefata.

Aquilo bateu em mim como se o seu amor fosse menor. Como se fosse possível medir sentimentos! Mas bateu em mim como um amor que veio com o tempo, com a convivência, os anos. Talvez com o criar dos filhos, o chegar das rugas, o tinir dos ponteiros ou o voar desatinado das folhas do calendário. Aprender a amar pareceu-me, então, a aprendizagem cotidiana que capacita os amantes a superarem as diferenças, as dificuldades. Parece grandioso. Mas por que soara como uma revelação brusca de amor menor, de amor forçado, de amor pequeno, de amor reduzido, de amor sofrido?

Dona Rita mostrara-se naquele rápido momento uma mulher dura, contida, sem excessos. Quantas hipóteses vieram para a fala daquela personagem! A sede de ficção me assaltou. Daí, delírios! No princípio, ela não o amava. Gostava de outro e o romance não deu certo. Frustrou-se. Apareceu Jacinto apaixonado. Caiu no agrado dos pais. Ela sempre dissera que não daria certo. Casaram-se! Ou então: Ela sofrera muito com o casamento, pois ele, aquela flor de criatura, aprontava todas. Chegava em casa quase todos os dias de manhã, bêbado, procurava confusão e, além da amante confessa, quantas vezes a agrediu? Depois de anos de exaustão e muito desgosto, Dona Rita deixou de sentir aquele entusiasmo da mocidade e somente o recuperou quando o já velho Jacinto entrou para uma igreja evangélica, tomou os rumos de Deus e se endireitou. Aprendera a amá-lo a partir daí? Nunca saberemos!

Ainda ouvimos os gritos dos presentes. O alto-falante despediu-se, o carro foi embora. Parece que com ele aquela alegria inesperada e alheia da festa do outro que se faz nossa também, mas acaba. Fica uma inveja, uma pena. A música continuaria na casa dos vizinhos. Em nós, ficariam outros ecos.

 Jacinto e Margarida são meus vizinhos! Ambos os nomes são de flores. Rita é uma forma carinhosa de Margarida. Jacinto é uma personagem da mitologia grega, cuja beleza encantara Apolo. Tornaram-se amantes. Um dia, após banharem mutuamente seus corpos com azeite de oliva, quiseram o jogo de disco. Apolo fizera um lançamento muito intenso e o disco batera tragicamente no rosto do belo jovem. Jacinto morrera, apesar das vãs tentativas de Apolo, o deus da Medicina, de salvá-lo. Há quem diga que Zéfiro, ligado aos ventos, desviara o destino do disco por puro ciúme. O fato é que do sangue derramado de Jacinto nascera uma flor.

Não sei quem ganhara o jogo naquela tarde e ainda não sei a razão de uma Certificação para professores efetivos. Mas sei que o evento perturbara a minha concentração abstrata. Pensei que talvez Seu Jacinto tivesse recebido a frase assim como um disco mortal lançado por Rita, publicamente, em seu rosto. Quem sabe tenha sangrado um pouco internamente e sentido, também ele, o gosto frio da morte? Fechei a janela. O vento estava muito forte!

8 comentários:

  1. Querida moça bonita,
    Fiquei feliz em saber do teu novo espaço de prosas e versos...não preciso dizer o quanto gosto do seu trabalho, já estou seguindo...seja bem vinda...
    "Barcaça" tem cheiro e gosto do nosso sul da Bahia...e esta tua "barcaça de letras" deverá ter todos os sentidos dos escritos que nos dão perfume e sabor...
    Beijos.
    Genny

    P.S. Apareça para conhecer o meu "baú", será uma alegria ter sua visita.

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  2. Valeu, Geny! Você é poeta que sempre admirei e quis ter perto de mim, portanto, estamos irmanadas! Tinha que ser um nome que falasse de mim, de minha terra. A roça de minha avó tinha barcaça, a paisagem da nossa terra é linda! Beijos! Rita

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  3. Rita querida A-D-O-R-E-I o blog,os poemas são lindos e que nos faz cair inteiramente na imaginação.Estou seguindo seu blog.

    Beijos! Dalila Bernardo :)

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  4. adorei é uma virtude pois mim renovei gosto dos seus poemas, versos, leitura vc contagia com seu jeito, seus poemas é imagem e semelhança de sua pessoa.

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  5. Já vi você em processo de escrita, olhando para o mar do Rio Vermelho enquanto dizia em voz alta: "Somos tão sozinhos!"
    De fato, em comparação àquela imensidão de beleza de mar somos bem pequinos e solitários, mas textos como "Eu aprendi a te amar" nos revelam o quanto estamos próximos em nossas solidões.
    Obrigada, Ritinha.

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  6. E como bem diz Vanessa da Mata " No fundo da alma há solidão... e o frio que suplica o aconchego..."
    Parabéns Rita por nos agraciar com essa escrita tão cativante e sensível. Adorei! Bjs

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  7. eu amei. tocou no fundo do meu coração!
    parabéns

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