quarta-feira, 24 de novembro de 2010

CONTOS DO LIVRO TRAMELA

 

 

 

Segredos


            A cidade voltara a ter cinema. O Cine Santa Clara estava de volta. É isso! Volta da alegria perdida em anos de espera, prejuízo sem conta. A história, nesses anos, fez-se sem o cinema, isso não se calcula, não se paga. Dignidade perdida. Naquele dia a cidade era uma senhora robusta, farta, saudável e feliz, abrindo a janela e sacudindo a toalha de mesa com farelos de pão, prostrando-se sobre o peitoril da janela, sorrindo.

Jorge caminhava pelas ruas com vigor nos passos, brilho nos olhos e mexeção nervosa nos dedos. Sorria para todos, como se em todos houvesse a partilha do entusiasmo pela notícia. A cidade voltara a ter cinema e Jorge era elegante, bonito, magro, óculos, de músculos naturalmente definidos e seguros, duro e flexível, assim era Jorge, negro. Queria encontrar pares para a comunhão do patrimônio afetivo. Sorria aos paralelepípedos, às amendoeiras, às acácias-dos-cachos-dourados, postes, pedintes, escadaria do sétimo-céu, às lojas, esquinas, casas, mãos-de-vaca na calçada, ao casarão da esquina que, desde a infância na escolinha, tem aquele tom de rosa desbotado, onde os cães de pedra vigiam do alto o que não se soube nunca.

Pudesse, ele pularia, ímpeto brabo de correr, mas como? Estava sozinho e era elegante. As meninas foram-se. Iria ao cinema sozinho, as meninas viraram umas mulheres casadas, donas de filhos, maridos estranhos, filhos que não seriam as mães, eram outros seres, estranhos. As meninas dançaram, mesmo as que não casaram eram outras, solidificadas, como ele próprio, na permanência da solidão propalada por  todo o grupo, elas também eram outras. Era sabido que havia uma mulher-amor, mas ele era, fundamentalmente, só, e pronto. Iria ao cinema sozinho, era o primeiro filme, após tantos anos... e os comentários? Não importava! Adoraria ir sozinho e depois contar os detalhes da trama, tudo. Adoraria ver nos olhos dos amigos a ignorância.

Jorge era o Amigo. Conseguia nutrir uma amizade, cultivá-la com todos os ritos que a eleição exige: dominava a difícil tarefa de ligar-lhes freqüentemente, batizava seus filhos ou comparecia às cerimônias, lembrava dos aniversários, reconciliava os casais, dava-lhes conselhos, ouvia-os, fazia-lhes visitas constantes. Ele aprendera a lidar com a amizade sem contaminar-se, sabia onde os amigos são lâminas e onde são beijos, e respondia a um e a outro com a mesma matéria-prima, sem, entretanto, perdê-los ou deixar de amá-los. Evitava, dessa forma, o câncer e o desespero.

Via-se agora Jorge saltando em passo largo para não pisar na correição de formigas vermelhas que tomava metros do passeio da casa de Ada. Como resistiam às construções, aos automóveis (donos supremos, legais e perenes das calçadas), aos transeuntes apressados? Logo aqui está a casa de Ada, velha amiga. Abriu o portão de ferro e antes de bater à porta olhou a roseira, o canteiro de malmequer, a grama e achou tudo tão bonito que sentiu saudade.

Da sua boca saiu o pensamento que o tomava sempre que pensava nela:

- Ada e esse excesso de desvelo em revelar segredos do que não viveu...

- Não, não são arrepios de desejo. Há de ser o frio, há de ser o barulho da rua, o ruído dos pássaros, a música que vem ao longe, as vozes das mulheres que comemoram o aniversário da amiga, há de ser o vento, há de ser o cheiro da comida, o medo da vida. Estou em plena erupção, afinal Jorge, você bem sabe o quanto sou erótica.

Ambos riram. Nessas tardes tomavam chá de erva cidreira com torradinhas finíssimas preparadas por ela mesma. Ada tentara o casamento uma única vez, mas desistira assim que constatou, triste, que não sabia ser branda, consensual, não tinha paciência pra homem. Casada, olhava para a janela e queria voar, sair voando, e voava. Ada voou. Desde pequena, Ada criava personagens para amar; uma alma de atriz ajudava-a a viver outras vidas, escapando da sua, tão sem graça, inventava dores. Depois vieram os romances baratos, antes as novelas de rádio, depois as televisivas, a literatura clássica, filmes e canções. Uma inadaptada, cria de um romantismo inviável, alheia ao léu da existência, uma desertora da concretude besta do mundo. Mulher de namoro tardio, sexo fortuito, escorregadio, ou coisa parecida. Amava mais a distância que o corpo. Nada, nada aprendia da arte da conversação, da relação ou do contato, mas sonhava tudo!

- Eu quero delicadeza, Jorge. A humanidade me dá tão pouco; sou órfã de conforto, de requinte, desde que nasci. Quero delicadeza, delicadeza, delicadeza, finura de trato. Mas não quando estou cansada, indisposta, desse jeito só sei ser grosseira, bruta, rude, chego mesmo a ser violenta. Você sabe.

Abandonada no seu universo pessoal, freqüentava o único sebo da cidade e levava para casa, isso já nos últimos anos, autores, títulos e... dedicatórias. Procurava livros usados que tivessem...dedicatórias, e se debruçava sobre elas, chorava-as, como na infância chorava ao ouvir velhas baladas românticas. Ada chorou tudo, perdeu, viveu e sentiu todas aquelas dores. Não haveria fôlego para as dores reais que viriam no futuro. Agora as dedicatórias. Lia-as e, de alguma forma, sentia-se útil por proteger os livros e aquelas pessoas. Contorcia-se ao imaginar quem tivera a coragem de vender, doar, trocar declarações tão fiéis de amizade, amor; de expor ao desconhecido palavras que permearam relações. Alguns livros tinham as páginas arrancadas, esses, ela não os levava. Ada lia e relia as dedicatórias e sentia-se acompanhada por aquelas vidas desconhecidas que se amontoavam pelas estantes todas da casa.

- Uma Musa precisa deixar de existir para ser perene, senão afunda na solidez humana e vira gente, vira pessoa e morre. Preciso perpetuar minha natureza de Musa, mesmo pros meus fantasmas, Jorge. A mulher sem segredo não existe Jorge, é preciso tê-los, isso é o que torna uma mulher uma mulher, e eu estou cansada de ser mulher, estou cansada de ser. Preciso contar tudo. Você entende, não é Jorge? Uma mulher precisa resguardar-se para continuar sendo novelo, melhor que seja embaraçado, cheio de nós, senão vira nada, vira pó, algodão em pó. Sinto-me arrefecida, cansada, o estar no mundo verdadeiramente apavora-me.

Achara numa velha gramática francesa, ladquirida recentemente, um nome: Eubs Carlos Amoroso. Passa seus dias com a criação que fez desse homem-nome e dedica-lhe versos: Eubs, a urbs chama-me fêmea, quero beijar o cadáver da tua boca e acordar nua na fábrica de gelo onde era nossa casa. O amor me diz passará, e eu travo os dentes em teus pés pétreos. Sozinha diante da noite. Restos de amanhã. O porto, a paisagem. Ele partira pra não mais se ir de mim. Jamais iria. Era eu a mulher de preto, cruzados os braços e pernas frias e finas e negras. Ele ficava no navio que ia. Indo, eu ficava nas mãos, talhando a madeira morta. Prenhe do teu perfil, prenhe da morte que me vinha, nas ondas que te levavam. Atalhei os fios dessa pauta para certificar-me das marcas, das datas, da volta de quem partiu. Ada apaixonara-se por um nome e criara um homem para amar. Ou coisa parecida.

Jorge insinuou o cinema, mas ela, com gestos firmes e silenciosos, distante, tocou uma xícara no pires, ergueu-se sem pressa, abriu uma banda da janela, onde não batia sol e recostou-se.

- Ontem, enquanto lavava os pratos, olhei através da janela da cozinha e vi telhados, os de sempre. Senti vontade de morrer; não, não foi isso, foi vontade de não estar viva, ou nem isso: vi que tudo era nada, bem assim, a sensação de nulidade. Senti medo, espécie de arrependimento por aquela invasão. Mas ela era tão exterior a mim, como se fosse uma visita sem convite, vinda dos telhados, com o vento. Afastei o pensamento como pude. Tive medo de perder o sabor que tenho, em muitos momentos, pela vida. Tive medo de ver a vida assim, e assim parecia ser a verdade. A existência me traíra.  Eu soubera. Agora vá. Preciso fazer versos para Eubs.

Jorge despediu-se, mas antes que a porta se fechasse, olhou Ada daquele jeito, sentada com as mãos nos braços da cadeira, recostada no espaldar, relaxada. O olhar perdera o brilho, a nitidez, e Jorge aprendera cedo que a aproximação da morte furta o viço dos olhos. Era uma leitura difícil.

- Jorge! - era ela, à janela, a dizer, como sempre, alguma coisa após o fim da conversa, às vezes gritadas no meio da rua - meu amigo, preciso de velas, traga-me velas na próxima visita. Meu quarto tem estado escuro e tenho medo. Meu medo só foge quando toco um corpo, por isso, as velas.

Iria ao cinema sozinho. No caminho, passaria por essas crentes protestantes sonsas, com saias tão longas e justas, amassando a carne de forma voluptuosa. Esqueceria por um momento o cinema, Ada e tudo, o membro religiosamente intumesceria.

Na tela, surgiram os primeiros caracteres e Jorge fechou os olhos e cruzou as mãos, tendo os polegares como suporte da fronte inclinada. E Jorge viu sua parede ser invadida por girassóis amarelíssimos, plantação vasta, ao fundo uma casa com uma mulher sem rosto, um homem fardado, chegando através das flores; viu o barranco de barro bem vermelho em frente à sua casa, os primos maiores e sabidos, o empurrão, seu corpo no chão fingindo um desmaio, tanta vergonha, tanta vergonha; e a vida seria tantas vezes esse desmaio fingido da infância. Viu-se negro na sala de aula, imaginando que o menino mais bonito namoraria com a menina mais bonita, e nunca era ele o escolhido por si mesmo; viu o seu silêncio de menino negro na escola, tantos anos com ele, segunda pele: silêncio; viu o primeiro estojo de lápis cera grande, acordando o belo; viu as meninas atrizes surgirem certas de que seriam grandes, escreveriam, atuariam; viu seus pais envelhecendo, adoecendo; viu-se a si mesmo diante do espelho a envelhecer, e ele, que antes pensara em morrer a ver esses tempos chegarem, tempos de colheita e armazenamento, tempos de registro e recordações, alegrou-se de uma alegria pungente, dessas que se confundem com a dor, dessas que envidraçam os olhos.

Viu que não nos tornamos grandes, éramos apenas pessoas, simples pessoas e, como as outras, tão cheias de sonhos, desejos, frustrações e complexidades. Olhei para Jorge, eu estava sozinha, sem os fantasmas, sem os conspiradores da Musa, sem ninguém. Olhei o meu amigo e ele olhou-me e estava tudo bem. A nossa amizade e as nossas idiossincrasias. Assistimos ao filme. Depois haveria o mar esperando por Jorge, esperando por mim, esperando por nós, o mar da nossa terra, maior e mais bonito que qualquer outro, o consolo-colo que só o mar, o chão, os cactos, as pedras da terra natal podem dar.










 Tramela


 
             A chegança era sempre assim: o pé firme abria a porta quase morta de tantos anos sem tinta, a madeira transparecendo de fora pra dentro os movimentos da mulher, onde o fino do vestido liso escorria ossos de uma tristeza surda ou vestígios da antiga tecelagem de carne dura. pelas frestas da porta a tramela imóvel parecia entender que não servia para quase nada, não trancava, não bania, era devassada em noites insólitas de suplício sem súplicas abrindo sendas insuspeitadas numa alma de madeira rústica, rasgando atalhos falsos e falhos nos talhos de suas frinchas sem trincheiras, donde pendiam lascas e lascas sagradas de solidão dissoluta, lascas amargas de sortilégios acrílicos. entredentes a boca exalava hálito carcomido por impenetráveis ruindades preservadas em conserva de azeite doce e ervas daninhas e danadas, hálito pálido de morbidez crônica de um ócio milenar gerando palavras com cheiro cálido de bélicas investidas vestidas de fome, sobejos de ódios catados nos cantos recônditos dessa vida braba e engolidos em seco perante as paredes da cidade lá fora, ruminados e expelidos em gritos por aqui. aqui eu me sabendo à espera acordada de qualquer hora, sempre eu à espera. à espera de promessas que não vinham nunca, nunquinha, à espera de um homem que - era o grito noturno daquela hora - o grito de todos os gritos passados e os do porvir - gritava - as veias inchadas num verde cortante rasgando a pele na ira do poder, de poder ser grande no volume grave da voz. na conspiração ritual dos gritos idos e dos vindouros, o tempo congelou a cena diante dos meus olhos infusos em remorsos degenerados e maldição perpétua de ser taciturna e vaga. a porta rompida a ferro num coice soberbo de pirataria, também esperava meus passos apressados para fechá-la, ficou à espera me vendo pisar leve e eu sorria um riso frágil de quem desaprende a usar a boca para ser feliz e era para ser feliz que eu sorria, lentamente eu andava sentindo um suspiro fugindo de meu peito aprisionado, abri a gaveta e entre mágoas amareladas pelo tempo e pétalas secas de beleza armazenada retirei um espelho pequeno, cabendo na palma da mão e vi nascer meu sorriso, abrindo caminhos entre rugas de musgos seculares, rugas escorregadias pelo limo das lamúrias, ressumando dúvidas e vendavais, rugas vivas reminiscentes no meu coração colapso, conjurado por deuses infiltrados nas trevas de eras sacras e sombras incestuosas. e ele me olhava seco. estaca fincada na sala vendo a sombra da porta aberta, a mancha negra de mim no chão se indo se indo inundando toda a casa e ele me olhava seco e eu me ia, sondando nele a dor que me comia as pernas bambas que se iam e me levavam à revelia de meus olhos, seco, seco ele me olhava. e ela ia. e eu seco sangrava palavras carpidas no meu silêncio de pedra, de um afeto que eu não dizia e eu morria em mim a cada aborto de carinho negado e eu queria, eu juro queria mas a mão era muda e a boca explodia a confusão inconfessada na cama na cozinha era puro não saber usar o verbo, era tudo não saber e o corpo se enroscava sozinho e o medo de mostrar ser... ser assim dolorido na secura de não saber ser... assim. essa coisa de querer dela o colo nas horas de medo de nada em que eu era menino com medo da vida, de querer com ela e dela a pele para ensopar o que descia de mim em lágrima e euforia de gozo por ela e por mim, e seco eu saía comido pelas ruas de loucas gordas que sorriam do meu medo carrancudo, o mundo me comia inteiro e era medo de ver que eu sentia, e seco eu chegava, e seca ela ia. ela. meu deus. era ela se indo. se indo, ela meu deus. à espera de promessas que não vinham nunca, nunquinha, à espera de não saber ser diante dos meus olhos infusos amarelados pelo tempo pelo limo das lamúrias eu era menino e eu sorria um riso frágil e eu morria em mim. o tempo repetiu a cena diante dos meus olhos cabendo na palma da mão a dor que me comia as pernas bambas de quem desaprende a usar a boca era puro não saber usar o verbo. seca ela ia e ele me olhava seco pelo tempo tempo cunjurado por deuses incestuosos nas horas de medo deuses com medo da vida infusos na palma da mão que me comia de medo diante de quem olhava meus olhos em mim e ele sorria um riso frágil de quem desaprende o tempo puro e eu sorria e eu morria e eu era menino diante de promessas que não vinham das lamúrias da vida eu era menino e diante do verbo a cena congelou o tempo o tempo seco dos deuses o tempo da vida o tempo da dor o tempo do medo o tempo de eu menino o tempo de eu sorria o tempo





 

 
O Quarto


             
            O amanhecer aqui, como em tantas partes, possui a litania dos sobreviventes, peculiar. Prosseguir não é nada fácil, não é doce, exceto aos dóceis, aos dúcteis, esses potentados herdeiros das débeis dádivas divinas, dos assomos e acintes das castas castas. Ou então, aos bem aventurados que vieram ao mundo com as partes pudendas voltadas para as emanações lunares. De resto, só pedras, calhaus, cascalhos, mais pedras, pó e sal. Pó aos que perseguirem quaisquer saudades de um futuro que não vingou ainda. Pó àqueles que enfrentarem face a face a cara da Medusa, musa absoluta e palpável dos que morrem em horas dispersas do dia, e durante a noite sonham com olhos abertos e a alma dilacerada, em chagas, em chamas. Pó àqueles que, contudo, ainda sobrevivem. Pó, enfim, aos que ousam o verbo.

Estou aqui, num quarto todo limpo e luminoso. O branco grudado nas paredes sugere um ambiente de luz infinda. Todas as manhãs crepitam crepúsculos inóspitos, e o primeiro pensamento que me vem é de infelicidade. Mesmo no desespero do sempre, eu desperto e luto, luto contra esta sensação advinda de lonjuras, onde não chego nunca, em mim talvez, ou no mundo que é mais vasto e pode sediar agruras e agouros. Minhas armas são afirmações declaradas de eqüidade.

As noites são abusivamente noturnas, povoadas com cenas do passado, onde os cadáveres pretéritos decidem simultaneamente a saída das tumbas, sim, pois que estão mumificados em minha memória servil. Ontem ainda, a rasga-mortalha rasgou com as asas a cortina da noite, proclamando a minha morte seguinte, aviltando, desde então, o meu dia vindouro. Com o seu grito agudo e oco bater intermitente de bico, todas as mulheres encarceradas deste quarto gemeram, menos eu. Só eu permaneci dormindo meu sono acordado, vigília constante que as bolinhas brancas não conseguem apagar. Criei resistências, a cada dia crio mais resistências, físicas e orgânicas. Os sobreviventes são assim, renitentes. Sim, eu tive medo, tive muito medo, mas e daí? Quis colo, senti sede e fome, senti rancores, ódio e medo, muito medo, mas e daí?

Elas são três e não têm rosto, existe apenas a fundura impenetrável dos olhos e a semelhança na ausência de peculiaridades faciais. São iguais a mim na sorte. As roupas são as mesmas sempre: um guarda-pó branco de botões dourados, uma pétala de mussenda-rosa no bolso esquerdo, e no direito muitas bolinhas brancas para “distrair as idéias”. As sapatilhas são forradas com lantejoulas douradas para combinar com os botões, tudo muito direitinho. O quarto é todo limpo e luminoso, o branco grudado nas paredes se estende pelas camas de cimento. As paredes são altas e lisas, nada há de crespo nesse universo, onde o total é único. Muito próxima ao teto, uma janela sempre aberta. E é para lá que temos, todas nós, os olhos voltados agora. Todas nós.

Meu pensamento vai trazer-te até aqui, onde eu me escondo e me restabeleço do mundo. Sou mulher de muitas paisagens interiores, e descrevê-las tornou-se o meu ofício. Ser flutuação de abismos e plantação de mandioca. Ser, ser e ser. Eu quis ser em demasia, quis existir demais, exagero de existência, por isso tão doída, por isso tão doida. Para que o amontoado de palavras traga-me pistas de um farelo de pensamento capaz de restituir-me à estrada, eu escrevo. Da infância, ficou aquela sensação de que o meu pensamento representava a única existência possível, o mundo só existia porque eu o pensava. Por isso me penso tanto e me perco tanto.

Por hora, deixa eu contar o que se passou comigo. Nós já éramos separação irremediável, eu e você. Estávamos delidos, afinal, não tivemos, de fato, uma estória. Tivemos, isto sim, breves ensaios com cenários apropriados, marcação perfeita, e um texto aberto, aberto demais para a objetividade concreta do mundo. E aí nos perdemos nas possibilidades de leitura. Nada, de fato, dito. As entrelinhas nos esmagaram, e o orgulho silenciou todo o resto. Agora, João habita em minha vida sem versos ou sonhos. Mas não esquece, meu querido, que o instante abriga o ido e o vindouro, e que isolar o momento é negar a continuidade do Absurdo.

Era muito tarde para ter um quarto. A miséria instituída não permitia isolamentos e, com o advento João em minha vida, o quarto surgiu como um grande susto. Era engraçado e confuso porque eu poderia dizer “meu quarto”, mas e ele, João? O que fazer com ele? Os quartos são adeptos da antecedência, daí, a solução: tantos anos sem João ali, comigo. Era preciso ser feliz sem invasores, sem bárbaros, e o marido é sempre um bárbaro, sabia meu querido? Pois bem, as paredes permaneceram brancas e vazias, toda a cor ficou o tempo inteiro ausente, e os meus olhos percorriam os cantos em busca das referências, das lembranças, das marcas. O desejo ficou amarrado ao pé da cama, desejo de brincar com o meu mundo de significações pessoais, fazer daquele espaço um recanto de relíquias. Eu não conseguia, os quartos são adeptos da antecedência. Tudo era o vazio das paredes. Comecei a perder o pé das coisas ali, nas paredes vazias do meu quarto. As vozes daqueles dias com João me perseguem até hoje, eram vozes que viviam voando da minha boca com asas de libélulas...

- Rogo por tua velhice, João. Só para saborear a eternidade que quero contigo. Enquanto houver cio em teu sangue, perecerei de ciúmes cênicos e sofrerei com teu cinismo seco, arvorando sorrisos ante o meu cansaço.

- Madalena, eu...

- Dê-me tua mão, João. Tens mãos de fêmea meu bem, e bravores de um Deus todo maldito. Acontece, João, que tu és, em amplitude, um homem. Com mãos de fêmea, é verdade, mas um homem. A mulher que te pariu é uma serpente.

- Maldizer a minha própria mãe, Madalena! A casa...

- Falo de sapiências, João, de sapiências. João, meu bem, o zelo de tua casa me consome os anos, os sonhos, os planos. As borboletas amarelas fecham-se e não mais retornam quando pisas em casa. O ar arrasta os aromas da tua ausência. Só o teu cheiro impera. Sê maleável, João, tira o calçado, o mundo inteiro te acompanha, quero-te em poeira própria.

- Deita um pouco Madalena...

Sentia. Tudo que sentia era uma fraqueza no pensar, um tremor de idéias abalando as mãos, e o meu corpo todo parecia repetir movimentos, os dentes raspavam na boca um gosto de secura que a saliva não amaciava. Naquelas horas, uma comoção me exaltava os ânimos, buscava a pia e lavava pratos, muitos pratos, todos os pratos da casa e das casas vizinhas, pratos limpos, pratos sujos. Nunca consegui tocar nos copos, os copos abrigam bocas, impressas bocas que mangam de mim, e eu não gosto. Eu tinha medo, muito medo dos copos.

- João, meu bem, ando tendo ânsias de divindades. Não me peças para dizer além. Tem paciência, João, cedo ou tarde recupero a distinção das coisas. Tenho tido francos prazeres ao banho. O corpo adquire uma dimensão erótica que o resto do dia não me proporciona. Toda a flacidez adquire um ar possuível, tocável.

- Madalena, eu posso...

- ... e eu desejo o meu próprio corpo, João, tocando-o em funduras, moleiras. O espelho ainda ousa revelar indesejares. Confesso negligenciar tais pavores. O que fazer, senão aceitar a corrupção fértil do tempo?

- Isso são sandices, Madalena, sandices.

- Exegeses, preces, fragrâncias, ervas, bulas, burlescas saídas tenho buscado para escapar das lituras que riscam minha alma. Tem paciência, João, ainda aprumo os rumos, dou-te um filho.

- Há no seu olhar um ontem que não havia, telepatia que não acompanho, não aprendo, não contento. Quero olhar mais os teus dias Madalena. Permita-me.

- João. Tuas palavras são tardias. A ambrosia tem-me deixado iludida de contentamentos, tenho freqüentado o leito de Deus todas as noites e engravidado de orgasmos exuberantes. Vem daí o o meu dilatar uterino progressivo, tenho parido filhos do Criador. João, meu bem, o mundo não vê, mas me sinto saciada, satisfeita, santa. Traze a cicuta, João, para brindarmos a minha divindade oculta.

- Basta, Madalena, basta!

Meu querido, hoje tenho um quarto todo limpo e luminoso. Vejo o meu pensamento exposto em minhas mãos, trêmulo. E também eu tremulo, tremulo. O mundo continua sediando agruras e agouros. João perdeu-se arrastado pelo vento, pois, meu querido, o vento leva tudo, o vento é vassoura do tempo, arrasta a gente pra longe, pra terras de nunca. O amanhecer aqui, como em tanta gente, é turbilhão de pavores, mas eu luto. Luto contra o aniquilamento que nasceu comigo e que me carrega, e carrega os meus todos, minha gente, meus semblantes, minhas paisagens. Continuo grávida de Deus, por isso, ainda ouso o verbo. Em João ainda encontro respostas. Quem recebe meus preceitos e os observa é quem me ama. Quem recebe meus preceitos e os observa é quem me ama. Meu querido, quem me ama? João, o preferido entre os preferidos, quem me ama? Quem recebe os meus preceitos e os observa é quem me ama? E o quarto? Quem recebe, entre as mãos, os meus peitos, é quem me ama? Quem observa os meus defeitos e os recebe, é quem me ama? E o quarto? Lave os pratos, Madalena, vá rezar. E o meu quarto? Por isso tão doída e tão doida. Por isso tão doida. Eu, Madalena, doida. Eu quis ser em demasia. Quis existir demais.

O amanhecer aqui...



 

 

 

 

 

 

 

Colcha de Retalhos

 “Minha solidão já está pronta
para queimar quem a queimará.”
Louis Emié



          A posse da subjetividade tácita no recanto das suas grutas nunca invadidas, no minar dos códigos em gotas, em sinais, em vertigens. A ordem se consumindo, se consumando. A desarrumação íntima da ordem. Sempre fui assim taciturna e vaga, assim dispersa, rarefeita nos pensamentos, de longos vagares, longe das pessoas, longe das vozes, longe das vestes. Mas sempre perto e presente. Inda mais na casa, ao chegar da jornada lá fora, onde minha palavra, que vem de dentro, e se expõe original e fiel à sua natureza de palavra oriunda de mulher, se depara com a palavra vinda de fora, construída com a concretude do exterior, feita forte sem adentrares mais atentos. Luta persistente, onde me desgasto, me renovo, me fortifico. E, com a casa, presente na pele, na mente, e presentificada sempre, lá ou cá, na minha paz de amor por ele. Só me sentia ausente, na ausência em que o outro não cabia em mim, em meu tempo pessoal, indivisível, interior, impartilhável, onde a natureza de gente destitui-se por completo do outro e silencia-se em si mesma, onde o estado de solidão inerente se manifesta, em meio à festa dos rituais do só. Naquela hora da impossibilidade plena do outro. ERA A COLCHA. Às vezes umas vozes vizinhas me vinham. Era a colcha de retalhos. Era a colcha de fuxicos, de fiascos e fagulhas. Era a colcha obscena, absurda. E foi? Era a colcha creindeuspaicriatura! Era a colcha do diabo. Era a colcha de princesa toda azul de seda. Era a colcha. A colcha dos retalhos de cada homem. E era um homem entre suas coxas, no arremesso final das carnes duras de madeira ebânica, danada, era um homem entre suas coxas, penetrando teso seus tecidos fechados, agulha prateando a vitória da posse tomada, tocando pés, enredando partes, arrematando pregas, embaraçando linhas. Eram dois, eram dez, eram tantos, eram todos, quantos eram? tantos outros, outros tantos e tantos e tantos e tantos e tantos e ela tão deles todos, formando a pictórica posse dos possessivos. Ela minha, ela nossa, ela vossa, ela tua, ela sua, ai nossa! todos com ela no tresloucado transcorrer tranqüilo das horas, lá nos cantos dela, no colo dela, deles era ela. ERA A COLCHA. Amadurecera o tempo. Sentia-me pronta para restituir-me em minha história com os cacos guardados, acordá-los do hibernar profundo de historicidade arquivada, reativar as vidas da minha vida, no mosaico dos trapos, dos farrapos, na coalescência dos mundos imersos em mim. Era tempo maduro de reconciliação. ERA A COLCHA.

Queima-se um pedaço na fogueira ardilosa do ciúme, incendiando-se na noite primeira. Era noite.

Apaga-se uma faísca da sua memória. Primeira manhã.

Queima-se outro pedaço e outro e outro e tantos e tantos nos ângulos obscuros das noites em que ela dormia.

O desespero dela na luta noturna contra o fogo devorando nomes e pinturas, o terror dos seus sonhos em sombras do passado ossificado na pele. Queimaram-se todos, e ele, sorrindo entre fiapos trêmulos, sorrindo na fumaça dos ossos incinerados. Até restar o vazio e ele. A normalidade do lar se instalara novamente, a paz desejada por ele na ordem e no progresso do casal, o resgate final do sebo do amancebamento. Nela, um nada se acomodara desde então. Onde a fibra da luta nas palavras? onde suas implicitudes? onde o amor? onde a mulher? O nada dela se apoderou. Ela não sabia da inquisição de sua vida na fogueira do que se chama amor, não sabia da ordem, não sabia da traição noturna cotidiana. Não sabia. Ela agora só vivia do porvir, mulher sem passado. Apagada a lembrança mais vaga do ontem, do anterior. Mulher só de futuro, ou só de hoje? Seria permitido aos seus passos débeis o prosseguir? Não. O futuro também seria eliminado, pois também ele ameaça rebentação, corrosão das rochas, brotar do novo broto, negação da ordem. Era preciso preservar a normalidade da casa de hoje, do amor de hoje. Lugar sagrado na casa de agora, no corpo da mulher de agora, sem retratos. Ele, o dono, o trono, o único, o último. Era preciso eliminar qualquer vestígio do prosseguir, qualquer pista do amanhã. E vi: ERA A COLCHA. Entre as frinchas do sonho que me perseguia as noites, o abrir lento da gaveta. O apossar-se do pano na contração da mão. O aproximar-se da vela (acesa para qualquer santo ou demônio que me afastasse os pesadelos que me vinham). E, num instinto de conservação, erguida, disse o seu nome e um não. O último eu mesma hei de queimar. Era a ordem. Galopava em mim a solidão com a sanha de quem se sente queimar, e em passos pesados e lentos eu caminhava, chegava perto. Pé e pé no passo do tempo. Os olhos do outro, gelados, desconhecendo, interrogando, perdendo. E a mão que uniu os retalhos, o último queimou. E a chama a consumir, a consumar. Vi um homem se decompondo em cinza. A vela apagou-se. O sol iluminou o lado oposto do quarto, amarelando a cama, e lá: A COLCHA. Ajuntei o pó, com as mãos em concha espalhei-o na colcha e sacudi tudo na porta da rua e o vento varreu.



 

 

 

 

 

 

 

As Janelas




           O meu olhar é nítido como os girassóis de Van Gogh. Tenho o costume de olhar a vida, as fotos. Persigo a revelação da imagem impressa na cena. Dormir sempre significou estar atenta para aprisionar a visão do sonho. O instante.

No princípio, tudo era o tumulto das mulheres alojadas em cortiços, avenidas, favelas, vielas, becos, ruas, casas, barracos, viadutos e túmulos.

Ali. Perfiladas. Lá estavam elas. As janelas. O reboco despencando da parede como borras de vela. E amarelas eram elas, as janelas, de um amarelo ardente encardido pelo tempo que transforma a cor em ferrugem, um amarelo amanhecer tardio, como todos os amanheceres de esperanças apodrecidas no decorrer brusco das desilusões humanas.

Lá dentro, a ladainha dos filhos gritando a fome, o choro de quem chora desde a hora em que nasceu, o enroscar dos corpos que buscam no sexo a agressão mais fácil. Num canto abandonado de um quarto, na cama, um corpo de mulher violentado mais uma vez pelo tempo do prazer do outro. Encolhido o corpo chora, todo ele. Num ponto daquele corpo o pensamento da mulher desvenda no telhado, no mofo das paredes, nos fundos imemoriais do sentimento, a sombra deformada de um homem, capaz de seduzir seu desejo, remexer seus caminhos grutânicos, até desatar os fios do labirinto, onde desvencilhar a trilha é mais se afundar no emaranhado da dança, do ritual do ir e vir, da  ida prolongada, da vinda advinda em curvas e sucessivas paradas. Debulhar do ventre. Ventania traçando atalhos.

Aqui dentro, a miséria me consome os anos, os sonhos, os planos. A miséria corrói minha alegria, estou presa, fincada nesse espaço de detritos improvisados e destroços. O cupim corrói as estacas do telhado, e o meu pensamento, não fosse o peso dessa crueza, desse desnudo convívio com as famigeradas fomes, insaciáveis sedes, levitaria. O meu pensamento, não fossem as porradas salariais no final do mês, levitaria. Há embate entre o que me cerca e em que me constituo. Insana, espero apenas a hora de enlouquecer e enlouquecerei, decerto.

Abertas as janelas, mulheres trepavam os fartos seios e cotovelos cinzentos cascudos. Murmúrios, balbucios, sussurros, segredavam o cio e o desejo no pé de orelha das vizinhas. Conspiração das mais antigas, o cochicho. O cochicho da vida de cada uma, os traumas da infância com o pai desempregado, tramas e treitas tramadas para abandonar o marido bêbado que chega nas madrugadas sempre infindáveis, desejoso do sorriso escancarado da mulher. Dela que passara a noite na janela com as filhas acordadas, assustadas, dela que pensara em acidente, em morte. E ele quer o sorriso da mulher que chora. As filhas gravam na cabeça o nome do pai, a idéia do homem. Pancadarias, sangrias, cachaças, porradas, pauladas, palavrões, “lonetas”, exalavam por todos os buracos do lugar em gritos, em pragas, em sacanagens vérbicas. Mutiladas, entorpecidas, saíam para contemplar a rua. Surgiam embaraçadas nas calçadas e, brandamente, assumiam suas posições nas janelas. E, assim, preparavam-se para uma fotografia dentro do tempo de viver.

Lá dentro, os sonhos com casas grã-finas, os meninos na escola com fardinha certinha e tudo. O fuxico cochichado, o mundo virado, a filha de zumira transando direto com os home lá do batalhão, menina boa, nova, boa de se aproveitar, pra você vê, é fim de mundo, disconjuro, num tá vendo o irmão de pépe, aquele que morreu de tiro, filho de mira do finado raimundo aleijado, que morreu atropelado, menina, pois é, o irmão de pépe agora deu pra sair pra cima e pra baixo com os picudo da cidade, lava carro lá no centro só pra tapear os besta, diz que é com juiz, delegado, advogado, vereador, dono de loja, pensa que engana.

Mulher de seio pendido até o outro lado da calçada, amamentava um gato. Cinzas, remotas senzalas, filho no parto partido do tempo/ parição alheia de areia e pó/ arribação de findo no fundo do poço/ aborto/ filho partido/ era precisa/ inda é preciso/ parto no tempo parição alheia sustentada pelo leite branco do meu peito negro/ meu filho não foi parido/ foi parado/ empurrado para a morte na liberdade da não vida. Arribação do filho ventania. Venta o ventre no vento do pai pai vento. Meu filho não veio pra festa/ tarde se destina ao útero intruso da menina sem trilho/ sem filho, mãe dos gatos da calçada acorrentada na pré-história das misérias. Filicidas. Infelizes.

E lá estava ela: Elisa. Melancólica com suas cólicas matinais. Tênue. Inócua. Lânguida. Elisa. Lisa como o nome. Limo. Mona. Nada. Limonada de lima. Nada em Elisa era intenso. Nada denso. Os espirros sonolentos e porosos. Preguiçosos. Elisa escorregadia. Vadia de brisas. Nebulosa. Elisa. Menina leiga em quase tudo. Magra. Meiga. Maluca de vidro, vidrada em perucas loiras. Mas, em Elisa, nada fascinava mais que os lilases olhos de claridade branda. De Elisa os lilases olhos. Olheiras afundadas num lilás breve e leve como a brevidade grave do riso liso de Elisa. Olhos de Elisa pintados por Lésbia com lápis de cor. Ela saía todos os dias antes do sol raiar e vinha batendo canela do Canela até aqui, ela e suas finas canelas de sabiá e o seu estojinho de lápis coloridos, além da borracha de desenho verde, apropriada para apagar as magras mágoas de Elisa, a pintura mais suave do lugar. A musa dos cartões de Lésbia, vendidos, por bagatela, nos bares dos meninos revolucionários. Menina de olhos melancólicos e cólicas lilases. Elisa. Elipse.

A subversão do fuxico fluía. Nas janelas, as mulheres trocavam receitas, ervas pras feridas do corpo que as do peito, não, essas não têm cura, têm remédio pra acalmar, pra adormecer, mas cura, a dor do peito não tem. Simpatias pro marido deixar a bebida, posições, chás pro mal do útero, preces pro amigo que partiu pra guerra e ainda não voltou, pragas malsinadas pela sina da amiga leal que traiu, remédio pra menarca da filha mais velha que ainda não veio.

O boca a boca da vida de cada uma começava a cutucar, a futucar o outro sexo. Bate boca, bafafá, forrobodó, quizumba, levanta poeira, eram armados também por elas, que já não esperavam tanto nas madrugadas. Cada “loneta” era trocada por um corno bem dado, às vezes por abandono, ou porradas revidadas, poucas conseguiam dos parceiros ouvir palavras, saber os pensamentos que bóiam na superfície do cérebro, a conversa era a fúria crescente, o grito e a ameaça da força, a imposição do medo. Mas as mulheres das janelas amarelas persistiam. A rua já não continha a vertigem da embriaguez, saíam às ruas quase sempre lúcidas, quase sempre certas, quase sempre com suas trouxas enormes nas cabeças, a filharada ajudando, mas já não surgiam como sempre, quase sempre grávidas, mesmo as mais jovens surgiam com o domínio do corpo, não se deixavam castrar, não se deixavam violar, eram Senhoras. Armava-se a confraria das janelas, com a adesão de meninos que aprenderam a falar, a ouvir e sentir, desde o útero, as dores das mães, com a adesão de meninos crescidos que se fizeram homens com o barro soprado pelo macho, pelo senhor, mas que apesar do medo, apesar da perdição repentina, do trono dividido, quebrado, extinto, viam, ouviam e sabiam usar a linguagem, usar o verbo. O outro sexo apavorado.

Orelha de pau aqui, ali, acolá. (orelha de pau é ornato do imaginário de crianças que, como eu, viveram num tempo onde crianças brincavam de roda, falavam com mato, com grilos, árvores, borboletas amarelas, bicas, jacas, bananas, burros, jumentos, terra, avó, barro, cacau, pirão de água com tomatinhos do quintal, primo badico, tia caquinha louca no corredor nefasto do casarão, dona romana cega costurando no escuro, itapitanga - pedra vermelha.). Orelhas de pau, pirongas, urupês, uns e outros, fulanos, sicranos. Golpe. Descobriram a fruta vermelha, buscaram documentos, depoimentos forjados, fotos nos jornais, nas gavetas, testemunhas foram compradas, de tudo, em silêncio, fizeram para que, no lugar, o cenário e as mulheres retornassem ao que eram antes, antes de... antes de quê... antes de quem?

Decidiram por Anita. A hóstia, a vítima oferecida em sacrifício à perpetuação da espécie. Anita. Negra. Seu ofício? Extrair cutículas, escolher os esmaltes mais vivos e escandalosos, enquanto cantava velhas cantigas, enquanto distribuía pitangas entre as freguesas que ofereciam as mãos em concha, só pra ouvirem as palavras da boca carnuda e louca de Anita:   “Guarde o meu anelzinho bem guardadinho”. Era a radiante Anita revelando com um sorrriso um pensamento solto que chegava. “Ser amada é possível, amar é possível” - e sorria da brincadeira da infância perdida. “A felicidade é possível, viu? A fidelidade - gargalhava- pelo puro prazer, pelo simples querer, é possível, o fim dessa miséria que nos consome os sonhos também é possível” - sorria. Mas havia aí uma tristeza surda, escondida até de Elisa.

No princípio do fim, havia um cheiro de risco, arrepio de pêlos pelo corpo, um grito vindo com os ventos, balançando as janelas, derrubando as panelas prateadas que brilhavam ao sol, as roupas alvas estendidas no matagal secavam na rapidez da ventania, as crianças já não brincavam de roda, já não choravam por nada, no lugar, a tristeza calada, o mau agouro, nos passeios das casas as comadres não mais contavam casos pros netos, as vizinhas já não sorriam, já não xingavam, tudo parecia prenúncio de um canto nefasto que viria inabalável com o vento. Janelas fechadas, mulheres pintaram todas as casas do amarelo mais áureo que encontraram. O canto que se ouvia era o lamento murmurado por dentro de todas elas.

Numa noite qualquer, num tempo guardado num canto esquecido da história, noite em que Anita colhia as melancolias que pingavam da boca de Elisa e não havia disparidade alguma nos olhos que se encontravam e se moviam, sem buscar entendimentos, sem bruscas buscas, olhos que se sabiam mútuos, que se perderiam no decorrer dos ponteiros. Presas as mãos, Elisa sentia o calor da mulher que amava. Anita se integrava às olheiras profundamente fundas de Elisa. Anita chorou e partiu arrancada das mãos de Elisa. Porta arrombada, os homens queimaram as cartas de amor de Elisa, os discos de Anita, os livros de Elisa, os risos de Anita, os homens queimaram os girassóis plantados na porta da casa, queimaram a casa e levaram Anita.

Nos dias que antecedem o meu aniversário, a solidão me pesa mais forte, já não pertenço às janelas amarelas, estou vaga e habito a vagueza mais vaga que há: a Rua. Evito os ventos, já não choro, tenho medo dos relógios, tenho medo de tentar voar e não mais saber bater as asas. Ainda me alimento de pitangas e falo coisas presas na memória, de livros lidos, de dores tidas, e uma voz me vem do fogo que move a minha escrita, a minha vida. As sementes do fruto vermelho entranharam-se nas rachaduras das calçadas silenciosas. O meu olhar é nítido como os girassóis de Van Gogh e os versos de Cora Coralina: de pedra. Persigo a revelação da imagem impressa na cena. E me integro a ela.









A espera de Rosita Lorca



          Eu sou Rosita e espero. Sentada. Pernas afastadas, pés fincados no chão, cotovelos amparados por joelhos aborrecidos e mãos alicerçando um conjunto rústico de tristeza. Queixo em queixas murchas, rugas cansadas, e olhos compondo um mosaico de suspiros. Trago um leque de rubras flores espanholas, furtado entre as relíquias cênicas de Margarita Xirgu e um chapéu. Ah, o chapéu! parte mais linda desse figurino improvisado. Um chapéu preto-francês, do século XVIII, com abas acanhadas e sinais imperceptíveis de alguma traça desgraçada. Traz um cheiro das antigas cantigas provençais, talvez tenha sido o preferido chapéu de alguma ribeirinha portuguesa do século XII e, para meu encanto maior: uma flor de feltro assustada e chorosa pertencente, pelo sensualismo desmilingüido, ao século XVI, mas (e isso eu posso jurar) confeccionada no auge de uma guerra civil do século XXIII, por um saudosista aposentado pela invalidez dos sonhos. Invalidez total dos sonhos. Mas, eu sou Rosita e espero, vendo o trem passar pela Rua da Linha em preto e branco. É a minha velha Ilhéus que canto nesta hora, vendo a escassez das casas, das cores, e o atiçar da fumaça embaraçando a vista. Sentada espero. Vejo os coronéis escondendo a cara na cara dos capangas que arrancam a menina de sobre os leões brancos da praça. A velha Rosita ainda espera, com a doçura desesperada de quem, na ausência, aprendeu o verbo amar em todos os tempos, conjugando-o de um só modo: espero. Indicativo. É dia claro agora e eles voltam, plantam na praça uma carcaça que chamam mulher. Condenada pelo tempo que destrói os que não têm raízes. Ferrugem impregnando o ferro na cólera coletiva silenciosa. Chuva. Pedra. Pânico. Povo. Urbis. A dama me olha, não suporta, cai. Voltam os coronéis mascarados de projetos postais, coisa e tal, e quebram a praça inteira, só não morro pela espera. É o novo que não entendo jamais, e ele não quer a velha Rosita sentada de pernas abertas. Onde os leões das crianças do meu tempo? Banquinhos das suas chácaras particulares. Praça? Pombo? Pedra? Povo? Passado. Os namorados se perderam no tempo, no encontro da praça desfeita, desencontro na praça, desencanto. Eu sou Rosita Lorca e tenho me arrastado no tempo, atravessando castanholas e bandolins, pandeiros e berimbaus. Ainda ontem, Chico Buarque de Holanda convidou-me com aqueles olhos, olhos de, olhos - ai minha nossa senhora, valei-me minha santa rita dos impossíveis, perderei o fio da meada - olhos do noivo que se quer ter, para o seu aniversário cinqüentista. Hoje não posso, meu querido Chico, estou esperando quem só eu sei esperar. Amanhã, quem sabe, ele chega e eu dou um pulinho aí, com o meu chapéu pintadinho de novo, a flor de feltro mais alegrinha e o leque mais leve. Enquanto isso, Chico Querido, fico esperando. Espero. O meu passa-tempo preferido é ver o tempo passar.





 

 

 

 

A Parabólica




          Cheguei ao local do encontro. Descrever talvez fosse fácil. A estrada até aqui povoada de evasões e tempo de gente que ficou. As flores alaranjadas se estendiam dispersas nas alturas, mas seria mesmo sábado? O nome daquela árvore semeada por toda a estrada... Temia esquecer as palavras. Em pouco a distância abalaria a comunicação cotidiana, as mãos já não diriam em socorro, como sempre disseram, as mãos perdidas perderiam a palavra do gesto. Ainda seria possível esconder a desorganização gradual do pensamento. Talvez o sorriso e o desespero. É, o desespero me salvaria na sua agudez absoluta; a agonia inflamada e ensandecida poderá reter a lucidez que me escapa. O horário vago libertou os meninos pela área de concreto. Teriam percebido realmente minha presença e meu tormento? O encontro anulado e eu esqueci. O dia foi amanhã . E o medo por não saber o nome daquelas árvores, daquelas flores. Mas lá estava eu: pronta.

Volto para casa. Sempre volto para casa. Volto e nunca sei ao certo quem se nutre com a minha ausência perambulando pelos cantos vazios. Volto e sempre digo para Augusto: nunca deixe de beijar as bordas das minhas ancas. Sim, Augusto, bem aí onde só você sabe ir tateando, com a língua entre dedos, a trilha onde se afunda certa a região do repouso do gozo. Não, Augusto, agora sim, um pouco mais, vem cá Augusto, ai... aí; bem aí, Augusto.

No dia seguinte ele era um estranho, um inimigo pronto a trair minha entrega, e eu, uma mulher recém-chegada de outras terras. Mulher distante e muda. As luzes da capital estão próximas demais e eu estou do outro lado, correndo descalça. Os sapatos, deixei-os em casa, não entrarei na escola sem eles. Na rua eu morro de uma vergonha pavorosa pela nudez dos pés. Estou sempre a cair de um abismo, e os meus pés sentem o vazio da vastidão que me aguarda. Pedras porosas vagam na imensidão, e o som é o mesmo: palmas das mãos batendo sobre os ouvidos, barulho de vaguezas.

Era preciso partir, por isso a estrada e o encontro. Abandonar a terra onde nasceu para poder correr sempre mais, sem parar nunca. Água. Beber água para saborear a vida escorrendo pela garganta seca. A parabólica anunciara, na surdina dos lares, que os tempos seriam outros e riscara nas paredes das casas risos de como seriam e seriam os mesmos. A lanterna fora apagada em todos os vilarejos. Só as velas no interior dos templos iluminavam, com as sombras, as calçadas. As gentes corriam silenciosas, curvas, em busca de filas maiores que por toda a sorte se expandiam.

Augusto buscava a mortalidade possível. Por isso Marina e suas entranhas de estranhezas. Infindável descoberta de ossos que se insinuavam urgentes no raso da madeira oculta entre lençóis, espumas, molas, quem dera a palha para apaziguar as tentativas de fuga. Ossos de Marina entranhados quiném lasca fincada na unha, sangrando a dor do lascão. De não ser amado sempre soube e amor não queria, bastava já, e somente as frias penas do seu corpo de flacidez perturbadora e a arrogância desarticulada dos seus silêncios e os cios dos seus ciúmes violentos cavando com as mãos a terra seca do quintal. Mulher amaldiçoada.

Mas, eu estava ficando. Cada vez mais eu estava ficando, ali, com ele. Ainda tenho a estrada, mas os nomes me escapam, estou ficando sem os nomes. E o homem amado que não me vem para salvar-me dessa felicidade absurda, absoluta. Augusto era o gosto da permanência, o medo de não precisar mais das palavras, e tantas já se foram. Daí os encontros com ele que nunca vinha. Mas ele virá, traçando a lápis o código inscrito em areia, condição possível, saberá de mim e em ódio, ainda que seja, me amará na surpresa do seu grafite, com a rudeza da madeira explícita. Chegará antes da primavera, adoecido da distância, com o cheiro não encontrável em outros homens, dirá aquela palavra que não separa nada de ninguém nunca e, por fim, terá meu colo calado, afundando minha alma em reencontro e paz. E nunca será demais a demasia desse amor demasiado.

Eram os desatinos mais sóbrios dos fragmentos de mim que sobraram. A percepção das horas possuía a consistência das coisas que desandam. Estou morrendo, estive sempre a morrer. Mesmo antes de respirar o ar de sua vinda, eu já me sabia morta, mas hei de, mesmo morta, violentar meu túmulo, roubar de lá a vida que me ficou presa, só para ouvir o som da sua chegada.

- É mentira! Tudo é mentira. Estou adoecendo de imagens. O que eu quero não é o ele que não me chega nunca, eu quero é a estrada, é a estrada que eu espero. E se me chega o mancebo dos meus sonhos, cheirando a gaita, eu corro a abandonar seu corpo semelhante ao meu em cor e calma, em busca do que ficou perdido em qualquer abismo, e continuarei perseguindo o que não estiver em minhas mãos.

Não houve tempo para a imitação secular do beijo na penumbra. Das antigas minas, os telhados inconfidentes permaneciam, apesar do passar da história. De lá, um fotógrafo obstinado por velhas telhas era perseguido por ela, metálica, ameaçando os ângulos de um filme que não viria, e se viesse, os sinos calariam os cines santa clara, isabel, brasil. Não mais estariam clareados pela escuridão. Os insones em vigília controlavam os devaneios dos ébrios. Os que se arrastavam nos rochedos em fuga traziam as mãos amputadas e os pés em fundas chagas. E daí? Buscávamos mais, as filas forneciam o suficiente para os saciáveis.

A minha natureza, há muito vinha se distanciando das gentes. Perdiam-se as palavras como pedras caem na estrada e desaparecem. Tudo rodopiava muito longe dos seres rupestres. Tudo ainda era o velho pião de madeira girando na mão do menino demiurgo que brincava distraído de gerundiar a queda das telhas. Me nutro de partos, nascimentos e partidas, de obscuridades de olhar de cão que ama o dono e a casa numa comunicação franzina e obcecada de tristeza e afirmação.

No primeiro dia do ano não chorei, perdi o caminho condutor das lágrimas. A solidão habitual atingiu a maturidade dos anos. Não chorei. Me sinto tranqüila. Que me venha o ano novo com todas as surpresas do porvir ou mesmo a ausência delas. Estarei sempre ali, naquela estrada, testemunhando o aterro progressivo do manguezal. Sempre em fuga. A felicidade sempre me levará àquelas terras de lá, de antes de eu chegar até aqui. Ainda me sinto nua, toda descalça, em vertigem. Ai, essa minha limitação pulmonar diante da vida... às vezes esqueço de respirar e transpiro nos instantes seguintes todo o esquecimento voluntário.

Augusto. Volto para casa. Sempre volto para casa e nunca sei ao certo quem se nutre com a minha ausência perambulando pelos cantos vazios. Volto e sempre digo para Augusto: nunca deixe de beijar as bordas das minhas ancas, sim Augusto, bem aí onde só você sabe ir tateando com a língua, na trilha onde repousa uma asa do meu gozo. Vai Augusto, vai beijando do meu corpo as bocas que hão de beijar seus beijos, a boca Augusto. Beije a minha boca. Em revolta de querer fundir-se, inserir no outro o próprio corpo todo; não em partes, todo. Em singeleza de amor perfeito, delícia de intimezas maduras. Os beijos, meu deus, Augusto, os beijos. A boca. Todos os lábios que se abrem na passagem de seus beijos. Minhas ancas, Augusto, de novo, vem cá.

Augusto ficou ali, me olhando de cócoras em meio à plantação de malmequer que se espalhava pelo quintal sem fundo daquela casa. Suas mãos caladas viam. Eu debrucei sobre aquele olhar a decisão de que partiria. Mais cedo ou mais tarde eu partiria em busca do que estava reservado a mim para ser vivido, minha feitura de vida.









MEDUSAS E CARAVELAS



Não sei quanto tempo ainda ficarei aqui diante do mar. Quero rever uma tonalidade de verde que eu vi um dia entre umas ondas, pois pretendo a felicidade, o contentamento, a leveza da cor envolta em águas. Queria ser a diluição daquele verde. A noite já manda seus carcereiros recolherem a rebeldia dos lilases, os espólios do sol poente, a confluência quente das tonalidades; e eu sei o que me espera mais além sem surpresa alguma; sei a noite que me toma assim como recolhe esta água-viva exposta ao sol, espraiando seu roxo por sobre a areia em longos fios que se perderão; esvai-se a água-viva pela areia - bolha quente e molhada derramando-se em ar e tinta fresca – afresco que não posso tocar. Toda, Inteira, Absoluta. Sem pena, gestos ou defesas. Enquanto eu me esvaio trôpega, desarticulada, debatendo-me entre as gentes vivas e ela, cheia de ar, ainda respira e ainda parece ter forças para o fundo da existência. Ela e eu em tentativas. Escorre-se ela em lilás sobre a margem de um papel demasiadamente branco. Ela e eu medusa e caravela.

Um estado de perdição vai invadindo lentamente a minha calma fingida, se apossando de mim; sinto estar tão sozinha no mundo, sem proteção, sem interlocutor possível que possa compreender meu infortúnio, meu desespero ainda brando. O turbilhão de imagens é perturbador. Sinto o silêncio das vozes que deixei de ouvir, das caras que deixei de ver durante esses anos de reclusão na relação com Otávio. E agora, buscar a quem? Sou e preciso bastar-me.

O pensamento se perde entre peixes desconhecidos que olham meus pés invadindo a poça d’água. Haverá tempestade no mar; o chumbo percorre o horizonte e o sol já vem abrindo uma clareira ao longe. Eu - sentada sobre pedras entre limo verde, água e meus mistérios - sinto as pernas doerem muito e temo não conseguir erguê-las na saída. Sinto tibieza nas pernas quando entristeço. Hoje rezarei o Pai Nosso às seis horas para ter forças. Há proximidade dos ponteiros.

Nunca imaginei misérias para mim. Sempre imaginei para mim os requintes da Fortuna, principalmente no palácio de Eros.

As lágrimas tomavam os seus olhos e se precipitavam na água. Havia confusão de raciocínios vindos com as ondas. Pensava nas suas contas pessoais, nos pais e no transtorno do trânsito naquele horário, final de tarde, de ônibus pela orla. As unhas ainda estavam grandes, não houvera tempo para cortá-las naquela manhã; pensou em ser daqui por diante uma mulher de unhas tratadas no salão, como Adéle; unhas pintadas, grandes... Subiria paredes assim. Pensou em alguns vizinhos que ela não sabia os nomes, e não sentiu remorso por não sabê-los. Não sentiria remorsos. Seria mais suave a travessia. Pensou no corpo e sentiu falta de suores. As lágrimas incontroladas assaltavam o seu rosto e o nariz inundava a boca com uma coriza insistente; as mãos de Maria Emília não tinham pressa em lavar tudo aquilo, pois sabiam que seria inútil. Dissipava-se. O vestido de tecido fino azul-marinho deixava entrever pelo decote, pela tira direita que teimava em cair, o seio mole de negra - e pálido - cortado por veias verdes que nunca se mostravam. A omoplata gritava em meio às carnes fartas da mulher, num contraste de ossos e redondezas ainda reinantes. O vento levava o tecido ainda seco do vestido e o corpo detinha o molhado. Luta entre o ar e a água, o corpo e o mundo; entre o refazer-se e o deixar-se; entre o corpo atingido pela dor e a alma que se libertava com o ar. Sentiu vaidade. Ficou feliz por continuar sentindo vaidade após tudo aquilo; estava viva então; sentiu vontade de rir e encontrar um olhar masculino admirando sua figura de mulher solitária à beira da praia.
Não aprendi das dores mais banais a sua naturalidade; tudo em mim funciona como o fim, o sem jeito; é incomensurável a dor de cada instante, cada gesto, cada não gesto. Devo partir. Pra qualquer parte. Não sei o que fazer, de fato, com a minha vida. Sempre me pesou demais a relação afetiva; não aprendi os trejeitos, as manobras; fugi, me debati e esbarrei-me no outro ao meu lado. E agora estou aqui diante do mar sem respostas; diante do meu destino sem certezas; diante da minha fraqueza querendo alguém pra dizer o caminho, a saída; diante da minha condição enferma de mulher sem fé, sem terços que amparem minha fragilidade milenar, minha existência de fêmea fraca, atemorizada diante da vida. Sou frágil, sou frágil, sim! E órfã! Como toda a gente humana. Se ao menos eu cresse... Talvez fosse menos só. Busco o mar e a solidão mais acesa; busco a mim mesma refletida nos raios mornos do sol indo; e ainda assim me sei inábil. Sei, uma outra me habita e faz planos audaciosos comigo. Sinto dor nos braços agora, uma espécie de formigamento, e olho o meu corpo como se estivesse assistindo a uma cirurgia, à dissecação da minha própria dor; sei que tudo isto vai passar; adormecerão os sintomas, a fúria, o rancor, o medo, tudo. Sei que passará, mas e aí? Começo a sentir frio; os dedos estão enrijecidos.
Tomaria das telas de novo. Pensou em ficar ali na noite que vinha, exposta à maré que encheria mais tarde e cobriria a pedra em que estava, cobriria parte por parte do seu corpo e ninguém no mundo sentiria sua ausência, seu desaparecimento; ninguém saberia tampouco das suas marcas ali, naquele fim de tarde, no ocaso do dia. Só mais tarde, no dia seguinte, certamente, sua família entraria em cena com todas as representações sentimentais. Pensou em beber uma água de coco antes de ir para o ponto de ônibus. Quis ser mais doce consigo mesma. Abandonou a pedra, a poça d’água, o musgo verde grudado por toda a extensão da praia e buscou inutilmente a água-viva. Sabia que deixara ali uma mulher que ela não encontraria novamente. Bebeu a água e sentiu-se mais aliviada; a garganta respirou melhor.
Aquela mulher entrando no ônibus e olhando fixamente para o cobrador, que se negava a aceitar suas moedas somente porque faltava um centavo, era Maria Emília. O olhar atacava o rapaz com acusações e iras. O olhar tornava-se cada vez mais arrogante até que resolveu pegar uma nota com valor muito superior ao preço da passagem e entregar-lhe. Olhou o jovem mal encarado como se estivessem num duelo. Ele, riso vitorioso, aceitou a nota e deu-lhe o troco. As lágrimas voltaram. Sentou-se. Se ele soubesse o quanto ela estava triste, cansada, precisando ser bem recebida pelo mundo; se ele soubesse que poderia ser violenta e até matá-lo com as unhas enfiadas em sua garganta porque ela morria quieta, em silêncio e suas unhas continuavam grandes. Era Maria Emília a mulher que se voltava toda para a janela e chorava vendo o mar. Precisava sentir regozijo pelo simples fato de estar viva, pelas pessoas da rua, do mundo, pelo azul infinito do céu e o verde daquele pedaço da praia, cintilante, desafiador aos olhos do cotidiano que a esperava novamente. Uma nova mulher teria que nascer com a dor. Uma mulher definitivamente consciente de sua condição. Forte.

O que teria de mim, homem? O que saberia sobre minhas estranhezas, meus calafrios noturnos quando eu saía do banho e não conseguia deter o tremor e pensava que seria a morte arrebatando em frio o meu corpo abandonado na quietude da casa? E o meu amor por Gerard Depardieu? Que sabia ele da minha dedicação filantrópica aos olhos de Chico Buarque? Que sabia Otávio da minha anemia desatada que eu ignorava há anos por preguiça de tomar o maldito sulfato ferroso? Nada. Que sabia eu de Otávio e o seu desejo por outras mulheres, suas fragilidades, seu amor, sua coragem? E ele, sobre os meus sonhos eróticos com outros homens? Os beijos? O que teria de mim, marcado, na natureza de Otávio? E eu? Que fiz para me fazer entender, conhecer, ser? Fui travando a língua, o corpo. Fui-me esquecendo que eu não era feliz. Fui adiando a avaliação, o enfrentamento. Faltava-me. Faltava-me. E agora eu o sabia. Eu tinha muitas sedes silenciadas. E pra quê? Acreditava que um casamento sempre traria insatisfações, mas que seria assim com qualquer um. Sem a felicidade, o que é possível fazer? Como detectar que não se é feliz? Como ser feliz? Não há vazios dentro da felicidade? Mas quem estaria pronto para preencher o formulário sem borrões? 

Era chegada a hora da dor; a vida me protegera até aqui; sofrera poucos danos na carne nesses 33 anos; poucas foram as perdas; a saúde do corpo só permitira cólicas esporádicas e uma angústia profunda causada pela tensão pré-menstrual que me fazia lembrar de intensidades e do meu lado animalesco adormecido; nesses dias eu despertava pra minha condição passional; punha-me a desejar gentilezas e palavras; delicadeza e preâmbulos só dispensados às conquistas iniciais; punha-me a querer - eu tão afeita aos cometimentos da aceitação - punha-me a infelicidades ainda mudas, ainda resguardadas no meu silêncio bruto, cismado. O meu corpo reage querendo reproduzir, querendo gerar; o corpo protesta berrando em erupções que aniquilam a paz, a normalidade, a trivialidade rotineira. E minha consciência civilizada tenta ignorar os gritos do corpo. Quero produzir telas, mexer com tintas, manejar betumes, pincéis, trapos, agulhas, linhas, papéis, botões, misturas, barro, reciclagens; quero usar as mãos. Bobagem! Ele nunca soube dos meus pensamentos. Nunca atentou para os meus vasos pintados, nem para as minhas máculas. Sempre escondi de Otávio tudo que ele deveria desprezar em mim; exibia apenas minhas glórias, meus sentimentos nobres, minhas bondades plácidas. Ele não via. Eu, muitas vezes, achava Otávio ridículo, digno mesmo de pena. Eu pensava. Eu divergia em silêncio. Não aprendera a expor meus pensamentos. Às vezes tentava dar alguma opinião, ele não ouvia. Eu sempre fui uma voz invisível. Era chegada a hora de tomar decisões mais solenes, mais graves e decisivas. Era eu crescendo na casa dos trinta, envelhecendo a folha exposta ao vento. O mar e a noite e o vento frio me empurravam de volta para casa. O ônibus parou em frente ao prédio em que morávamos. O elevador parecia me levar para outra dimensão. A órbita nova me assustava.

A porta do apartamento me olhou durante alguns instantes. Não me queria de volta. Era a porta de Otávio. Senti que o primeiro desafio seria entrar. Resolvi encará-la de frente por alguns instantes e depois, sem tirar os olhos dela, tirei a chave da bolsa e invadi a fechadura. Empurrei-a. Já não era o apartamento que deixei, um pouco meu. Inóspitas paredes me atravessavam e os objetos perderam o calor e a cor de antes. A avenca pendurada próxima à janela parecia rogar meu colo, minha escolha. À mesa redonda de vidro, que me parecia enrugado, escolhida por ele, alguns papéis, contas, e uma eu me olhando ostensiva e séria. As cadeiras caídas como eu as deixei, e muito mais vermelhas. Otávio, eu vi em tantas coisas. Sentado no sofá como a querer diálogo, um pouco rindo da situação; outro Otávio louco se desesperava aos meus pés abrindo os braços a pedir volta. E o meu destino se abrindo em azul dizendo venha, vamos continuar. A televisão ainda ligada parecia uma nova entidade na casa, reveladora. Pensei que veria tudo de novo numa reedição especial do acontecimento. A urina derramada no tapete. Na cozinha Adéle nua tomava café com Otávio e Raul que quis me abraçar, mas acabou sentando novamente e sorrindo para os dois.
Imaginei encontrar Otávio dizendo-me: “É mentira, Maria Emília! É mentira!”. Já era noite e tudo bem poderia ter sido apenas um conto, uma notícia, um sonho.

Assim acordara naquela manhã: invadida de pulsações, arremessada entre as pedras de um mar bravio; sentia o ar tornar-se cada vez mais rarefeito; o corpo era peixe revolto a nadar na areia; erguia os olhos buscando ajuda; e o que vinha era mão repleta de anéis; afogava-se falando, repetindo a frase. Acordara sufocada, quase sem conseguir pronunciar as palavras provocadas pelo sonho-pesadelo daquela hora:

- Preciso respirar, preciso respirar.

Bebera água - havia sempre água por perto, pois sentia muita sede durante a noite no verão - e levantou-se sonâmbula em busca de uma tesoura. Não conseguira cortar as unhas; na adolescência, usava-as grandes, hoje, aparadas rente à carne; um pouco por causa do nojo que Otávio tem de unhas grandes e por mim que não suporto o ritual de ir ao salão de beleza; não suporto pintá-las, pois me sinto menos apta para manuseios; cortando-as me sinto mais propícia à submissão, mais indefesa, não gosto da sensação. Pensara cortar as pontas dos cabelos a fim de ajudar no crescimento. Desisti mais uma vez e fiquei pensando na razão do desejo de cortar. Queria ouvir a voz de Otávio, mas era tão cedo e ele só ligaria bem mais tarde, provavelmente após a reunião com o grupo de micro-empresários venezuelanos. Há três dias ele viajara. Não sentira nenhum desejo de tomar o meu café da manhã. É a minha refeição preferida. Resolvi comer uma banana apenas em frente à tevê. O noticiário pela manhã era o menos agressivo, parecia conter mais silêncio, mais tempo e mais beleza. Sentira leveza de estar sozinha sem ritualizar o dia diante do outro; cuidaria das gavetas, dos papéis velhos, da organização paulatina da correspondência com os amigos distantes que restaram, de ficar quieta comigo mesma, afagada. Aproveitaria o restinho de férias para cuidar do meu universo pessoal.
Ligo a tevê e finalmente pego a tesoura com determinação. O noticiário chega veloz, num turbilhão de imagens. Cenas de guerras infindas, homenagens oficiais, empréstimos em bilhões para o subdesenvolvimento do meu País. Mais recheado de desespero que o convencional das manhãs. Penso nesse instante em que se atropelam notícias, que o meu pensamento não acompanha, no documentário sobre profissões que vi na sala de arte outro dia; penso naquele mineiro esperando encontrar diamantes redentores da sua miséria; penso nos dedos tratados e finos das donas dos anéis. Volto a pensar na dívida externa, naquela matéria sobre a riqueza mineral usurpada do país durante os séculos XVII e XVIII. Penso. As imagens prosseguem no séqüito das seqüências diárias das edições, e eu me deixo perder um pouco no meu ritmo, na assimilação, numa mastigação própria, lenta, como faço com os alimentos. A apresentadora sorri para a próxima notícia pitoresca sobre um jogador de futebol, esquecendo a cena de sangue anterior. Esqueço-me, esquentada pela velocidade das imagens que vêm, da pontuação, das regras e da tesoura. Coisas escapam enquanto o senso crítico tenta sobreviver ao pó, ao pulo do gato tecnológico, à informatização do globo. Aqui e ali, estou contaminada de imagens, atordoada com os astros que surgem e desaparecem como personagens de animação. A balança comercial ainda é um enigma; as eleições, os discursos, as ofensas americanas à honradez dos nossos dirigentes, os nossos dirigentes ofendidos, a mentira, a verdade, os discursos adequados ao momento, a mobilidade atenta aos números das pesquisas. O apresentador polido, a apresentadora tentando esconder um anel inadequado à apresentação do noticiário... Um nome, outro nome e eu olho atenta pra tela... O rosto dele, Otávio... O corpo de Otávio furtivo esgueirando-se para fugir dos jornalistas... Otávio! - eu grito; seguro a tevê como se quisesse reter o movimento da imagem. As palavras sucedem-se como num sonho; o tempo não existe e a compreensão, sempre dispersa, alarga-se diante da notícia. Acabou. Acabou. Já é outra nota. A apresentadora já sorri; eu seguro a tevê como se quisesse... Eu não quero; eu não sei. Eu? Eu. Maria Emília. Eu babo, babo e choro e sai de dentro de mim um grunhido fino, estranho; eu me mijo inteira tentando reter a urina, num átimo de lucidez e censura, mas já é tarde; estou entregue totalmente ao nada; não quero ver ninguém nunca mais. A imagem, o retrato daquela mulher, os nomes, os nomes! A notícia, a televisão, e eu babando; babando como faço quando gozo. Agora só havia a morte. Eu estava inserida violentamente para dentro do noticiário; expulsa da minha realidade; arregimentada para a virtualidade da distância das cenas. Sabia-me inteiramente viva, acesa, atingida. Era eu mais uma imagem a contaminar o meu universo turbulento de cenas. Eu babava e chorava, ajoelhada diante da tela. O tempo em que fiquei ali eu não sei. O casal dá o “tenham um bom dia, aproveite bem o seu dia” e me deixa sozinha na sala, impossibilitada de reeditar o programa, apertar o botão de controle e reter a imagem de Otávio, do meu Otávio fugindo dos repórteres, dos fotógrafos; Otávio escondendo-se amedrontado, mudo, tentando esconder o rosto ao mesmo tempo em que me olha, me busca e tenta escapar do meu olhar, tenta esconder o rosto. Quero matá-lo e protegê-lo dos jornalistas ferozes. A manchete teria sido: “traição acaba em tragédia ou sócios dividem os negócios e a mulher, ou ainda: viagem de negócios revela infidelidade; mulher morre após transar com o sócio do marido; triângulo amoroso acaba em morte”. Não sei. Vi, naquele momento em que o pensamento foi arrebatado pra notícia, Otávio fugindo; a imagem da piscina onde os três tinham estado antes da tragédia; a suíte do hotel onde Otávio estava acomodado e em companhia de Adéle no momento do flagrante. As palavras desapareceram tão rápido do aparelho. Era mais uma notícia, e eu ali, refazendo todo o texto dito e o não dito. Raul, percebendo a ausência demorada de sua mulher, saíra a sua procura por todo o hotel antes de chegar à porta do quarto de Otávio. Meu Deus! Raul ouve os gemidos tão conhecidos, seus. O quebra-cabeça de anos de convivência se formando inteiro diante daquela porta. Meu Deus, Raul! E eu aqui esperando o retorno do meu amor, torcendo para que a viagem à Venezuela fosse um sucesso. Vejo os olhos de Adéle, sempre tão sorridentes, arregalarem-se diante das batidas explosivas de Raul na porta, nos gritos estúpidos de Raul, na sua dor que é minha agora, nossa dor. Os corpos amantes nos traindo, se amando. Os corpos e as cenas, agora mais que suspeitas, óbvias; as brincadeiras, olhares, tudo envolvido no agora. O meu ciúme, minha flacidez, minha subjetividade lassa, culpas, dedicação, o meu amor estúpido, meus zelos excessivos, minha vontade de ser inteira. O desespero dela diante do flagrante, tentando escapar, tentando fugir pela sacada do quarto; tentando apagar aquela cena; arrependida, amedrontada, assustada; aquele homem dentro do quarto imóvel, lívido, incapaz de ser dela, de salvá-la, de protegê-la; aquele homem que não era o seu companheiro, mas o seu amante. Apaixonado? Ele seria apaixonado por Adéle? Estariam tramando uma união permanente? Quanto tempo juntos? E os móveis que trocaríamos quando ele voltasse? A morte determinando o fim de tanta coisa. O corpo de Adéle ali, caído, morta. E eu sinto pena, raiva, ódio, inveja, dor, calafrio, nojo, prazer de vingança, prazer e vergonha de ser a fiel; a vítima do outro lado da história; prazer e vergonha por ser a santa; por ser assim: prazer e vergonha. Achava que era uma mulher muito atenta aos sinais. Parece esquisito, mas uma mulher sabe de coisas sem que elas existam, ela intui antes que sejam, ela cheira antes do vapor subir; uma mulher é bicho louco. Um olhar denuncia; uma simples hesitação revela; o disfarce forçado, palavras ditas ao léu; um pensamento que escapa num sorriso a mulher é capaz de ler. Eu sempre fui assim. Essa capacidade de ler o que não pode, nessa verdade de cada um ser fato oculto, jamais explícito, nem quando se diz a verdade, pois a verdade se revela no outro de acordo com o seu desejo de camuflagem, de verdade que se quer revelada. Mas vem essa sensação de estar equivocada, louca, obstinada; vem a sensação de estar fazendo julgamentos sujos, e danosos para a paz do espírito. Um verdadeiro inferno, as leituras do não dito, do silêncio, do olhar. Comecei a ignorar minhas intuições, ajudada por Otávio que me dizia, aborrecido: “você e essa mania de ver demais”, você está ficando louca, Maria Emília! Comecei a desprezar todas essas leituras. Mas sempre foi tão óbvia a inveja de Adéle com o nosso relacionamento; aquele cruzar de pernas deixando entrever a parte mais profunda da coxa; o dia em que saiu enfezada lá de casa após a minha revelação de que estávamos estudando a possibilidade de uma gravidez. Maria Emília não aprendera nada! Nada! As dores mais primitivas, o ódio, o desejo de vingança, o querer ir imediatamente trepar com o primeiro que aparecesse, a sanha de fêmea traída. A dor dilacerava qualquer conteúdo assimilado de sabedoria. Maria Emília viu-se traída. Não foi fácil escolher o amor. E, sobretudo, não foi fácil definir aquela espécie de formatação amorosa.

Sempre quis que Otávio lesse aquela entrevista de Sartre, que eu guardo há anos, sobre a incomunicabilidade e a verdade. Sempre quis discutir isso com ele, mas ele sempre fugiu do assunto, não tinha paciência pra filosofia, dizia, e eu contra-argumentava que não, era vida, era necessário... Talvez se ele entendesse quem eu era, minha verdade, talvez se eu soubesse verbalmente que ele precisaria me trair e mentir...

Abro a janela e me assusto com o mar diante de mim, imenso como a noite varrendo o espaço; olho como se fosse nova a sua existência ali. O acesso era habitado por grandes pedras. Nunca tínhamos ido àquela praia. Otávio dizia: nem tente! Só tem maconheiro e ladrão! E eu aqui, Otávio, com você! Segura, feliz e sem entorpecentes, senão a cegueira. E você se sentindo melhor que aquele rapaz negro, sem camisa, com um menino nos braços. E eu me sentindo melhor que a namorada dele, linda, que vai com um biquíni minúsculo pra praia todo dia, e lhe dá beijos e deve até trepar com ele por ali. Quem é melhor? Ela ou eu – ambas negras - com minha reputação imaculada e meus desejos mortos, calados, sepultados vivos? Eu e minha atração por filosofia e minha ignorância diante de mim e de você. Meu adorável Otávio Augusto! Muito prazer, moça maconheira. Muito prazer rapaz que trepa com a namorada atrás das pedras e carrega um menino nos braços. Muito prazer mar onde morei até aqui. Muito prazer e adeus pedras que nunca cruzei por medo dos meninos, homens, mulheres que não eram os nossos. Em que me transformei? Talvez se eu tivesse ido várias vezes até ali, do outro lado do edifício, teria me encontrado com um jovem sem camisa disposto a me ensinar segredos valiosos da existência.

Agora Maria Emília faz as malas. Silenciosa, sem lágrimas. Está cansada. Amanhã bem cedo, antes de partir, irá àquela praia e tomará um banho. Procura nas gavetas a velha revista com a entrevista de Sartre e vai recortando pedaços da memória. O telefone toca. Começa a chover. As palavras vêm vindo diante dos seus olhos e diante de sua natureza pronta e disposta a seguir. As folhas amareladas da revista e os olhos da mulher.

J.P.S.:Eu penso que cada um deveria poder dizer, numa entrevista, o mais profundo de si. Para mim, o que vicia as relações entre as pessoas é que cada um conserva, na relação com o outro, alguma coisa de oculto, de secreto, não necessariamente para todos, mas para aquele com quem ele fala no dito momento. Penso que a transparência deve substituir sempre o segredo, e penso muito no dia em que dois homens não terão mais segredos entre si porque eles não mais o terão para ninguém, porque a vida subjetiva, assim como a objetiva, estará totalmente aberta, dada. É impossível admitir que mostremos nosso corpo como fazemos, e que ocultemos nossos pensamentos, considerando que, para mim, não há diferença de natureza entre o corpo e a consciência.

E ainda é preciso saber do amor de Simone por Algren. Tenho tanto a fazer. A tesoura olha minhas mãos. As unhas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário