AS BARCAÇAS SE MOVEM!
Rita Santana
“Cada um é suas ações, e não é
Outra coisa. Oh! Que grande doutrina
Esta para o lugar em que estamos!
Quando vos perguntem quem sois,
Não vades revolver o nobiliário de
Vossos avós, ide ver a matrícula de
Vossas ações. O que fazeis, isso
Sois, e nada mais.” (Padre Antônio Vieira)
Iniciei a leitura do livro “Uma questão de Igualdade: Antônio Vieira e a Escravidão Negra na Bahia do Século XVII” de Magno Vilela. Levei o livro para a viagem que fizemos a Itajuípe - Sul da Bahia - e durante o descanso, li os três primeiros capítulos. No entanto, as leituras de uma viagem são múltiplas. E quando ela é tão cheia de encontros, os pensamentos se entrecruzam num bordado único. Enquanto lia o livro, lia também a própria visita à cidade. Olhava através da janela e via o Lago grande e eterno e acompanhava o voo das andorinhas.
No passeio com Itatelino, ele nos mostrou várias barcaças. Conversamos sobre o cacau, a lavoura, a vassoura de bruxa. Fiz uma entrevista improvisada com ele, mas não consegui salvar a gravação no celular. É preciso dominar as tecnologias, Rita! Ele nos deu o presente da paisagem. As fazendas, as bromélias sobre árvores gigantes, postes e pedras. As pedras pretas se derramam sobre aquela paisagem como se espátulas certeiras acertassem a tela e o pintor fosse, em verdade, um poeta.
Itatelino é um velho conhecido de todos por ali, portanto passávamos e pousávamos nos lugares. Entrar nas fazendas, poder visitá-las e fotografá-las foi maravilhoso. Naquele passeio cujo propósito era fotografar barcaças - grande paixão que me acompanha desde a infância - senti o que acontece quando estamos em belos lugares. Não moramos ali, mas desfrutamos do lugar. Logo, somos donos. Talvez aí resida o sentido da posse. Apossar-se deve ser assim parecido com o tomar conta do lugar, torná-lo seu. Senti-me dona daquelas terras por amá-las.
Amar as barcaças sem ser fazendeira ou filha de fazendeiros. Contemplar a beleza que nelas há, apesar das histórias de exploração. Amá-las porque são poéticas no seu discurso arquitetônico, na forma de telhado que assumiram, na disposição das cores que compõem o conjunto das construções. Confesso que sou devota de telhados e de telhas. Entender a harmonia do zinco com a necessidade de calor das sementes. Senti-lo com o respeito devido à sua adequação ao lugar. Entender a natureza das coisas. Aprender com o tempo. Aprender com os olhos que já chegaram aos quarenta e começam a perder a acuidade, por isso precisam desenvolver intuições ocultas, sentidos inauditos, percepções finas, e não podem prescindir das lentes.
Apreciei com agudez cada instante que passamos ali. Ouvi sobre a lavoura, o funcionamento das barcaças, senti a textura da madeira nos cochos onde ficam as sementes quando chegam da colheita e o perfume do lugar. Entendi um pouco sobre o tempo das sementes naquelas caixas de madeira. Encontramos as barcaças fechadas com cadeados, daí não podermos abri-las. As barcaças se abrem! Movem-se sobre os trilhos. Assim as sementes secam ao sol e as barcaças fecham-se para protegê-las da umidade. A educação das barcaças.
Voltar a Itajuípe foi um reencontro comigo mesma e com tantas lembranças de acontecimentos remotos, dias longínquos, infância, adolescência e juventude. Era eu novamente a menina viajando com a família para Itapitanga. Íamos visitar os parentes maternos e principalmente a minha bisavó Ester Ferreira. Morávamos em Itabuna àquela época. Aquelas ruas nos eram familiares. As curvas na saída da cidade, o Rio Almada partindo o caminho, a ponte mágica - como todas as pontes o são - as escadarias da Igreja Coração de Maria. O meu pai continua vivo provocando as sensações que somente a filha primogênita sente. Uma necessidade de consentimento tardio ainda perdura. Como também a vontade de ser aprovada e perdoada por ele. Às vezes, cada vez mais raramente, chega o ímpeto de desafiá-lo.
A trajetória da cultura do cacau na Região deixou marcas indeléveis, como aconteceu em toda parte onde o poder das oligarquias agrárias foi preponderante. Uma delas é a velha pergunta: você é de que família? Sou da família Santana de Ilhéus. Aqui, o encontro com o livro. O padre Antônio Vieira viveu uma verdadeira saga devido à sua ascendência. A sua avó teria sido índia ou negra e se envolvera afetivamente com Baltazar Vieira Ravasco, ambos serviçais de uma casa nobre. Desse envolvimento nasceu Cristóvão, pai de Antônio Vieira. A Inquisição, incomodada com as ideias políticas do padre, sempre questionou a sua origem. O Tribunal da Inquisição chegou mesmo a publicar sobre ele: “pessoa de cuja qualidade de sangue não conta ao certo”. Vivia-se num período de discriminações de toda ordem. Perseguiam-se os cristãos-novos, os judeus e os escravizados. O quadro social de Portugal, segundo o autor, era de perseguições étnicas, religiosas e sociais. A escravidão por lá, desde o século XVI, atingia negros, indígenas do Brasil e mouros aprisionados durante as batalhas. Pensar que aproximadamente um quinto da sua população era de escravos em 1532 é um assombro. Olhava as folhas do mamoeiro e pensava.
A leitura prossegue. Vilela nos leva para Portugal onde, diante da nobreza, o padre proferiu o discurso da 3ª Dominga do Advento. Naquele texto, ele questionava o significado da palavra nobreza na gramática da nossa língua. Apenas dois sentidos eram abarcados: sangue (procedência) e qualidade (função social). Vieira opôs-se a esse reducionismo semântico afirmando que somente suas ações poderiam qualificar um homem “porque as ações de cada um são a sua essência.” Atrelei o meu Santana - íntima e simbolicamente - aos insurrectos do Engenho de Santana. A cada dia sei que não posso parar de me construir. É incessante a busca para Ser.
Enquanto a chuva caía e o cenário chumbo arrebatava a minha alma, refletia sobre os cineclubistas de Itajuípe. Levar o cinema a um público diverso e provocar deslocamentos e reconstruções é uma ação nobre. Quantos nobres nós encontramos por lá! A formação de plateia oportuniza a descoberta dos desejos individuais e a construção coletiva. A câmera chega aos cineclubes para que a projeção vá além dos filmes exibidos. É necessário produzir discursos.
Eu testemunhei o cacau na pequena roça da minha bisavó. Vi o seu casarão abarrotado de sacas, por onde brincávamos. Na porta da minha casa em Ilhéus, defronte dos Armazéns Gerais, eu vi as trapicheiras nos trapiches manejarem agulhas imensas para o arremate dos sacos de aniagem. Testemunhei as sementes espalhadas pelas calçadas secando ao sol. O cheiro de tudo aquilo está em mim. Sei que as barcaças e a paisagem nunca foram minhas! Mas nelas finquei minha bandeira vermelha e estendi lonas pretas, montei barracas. A minha nobreza, Padre, vem de ter tomado posse desse tesouro de terras, de cheiros, imagens e construções. Tornei-me meeira, posseira e lavradora de toda a tradição improdutiva. Tomei posse, fiz assentamento. Até hoje labuto pra Ser. Atenção! As barcaças se movem!
Quanta beleza em sua escrita, Ritinha. Seus textos provocam molezas na alma da gente. Você é uma belíssima escritora, minha irmã. Beijos. Ester
ResponderExcluir