domingo, 21 de novembro de 2010

AS BARCAÇAS SE MOVEM!


AS BARCAÇAS SE MOVEM!
Rita Santana

“Cada um é suas ações, e não é
Outra coisa. Oh! Que grande doutrina
Esta para o lugar em que estamos!
Quando vos perguntem quem sois,
Não vades revolver o nobiliário de
Vossos avós, ide ver a matrícula de
Vossas ações. O que fazeis, isso
Sois, e nada mais.” (Padre Antônio Vieira)



Iniciei a leitura do livro “Uma questão de Igualdade: Antônio Vieira e a Escravidão Negra na Bahia do Século XVII” de Magno Vilela. Levei o livro para a viagem que fizemos a Itajuípe - Sul da Bahia - e durante o descanso, li os três primeiros capítulos. No entanto, as leituras de uma viagem são múltiplas. E quando ela é tão cheia de encontros, os pensamentos se entrecruzam num bordado único. Enquanto lia o livro, lia também a própria visita à cidade. Olhava através da janela e via o Lago grande e eterno e acompanhava o voo das andorinhas.

No passeio com Itatelino, ele nos mostrou várias barcaças. Conversamos sobre o cacau, a lavoura, a vassoura de bruxa. Fiz uma entrevista improvisada com ele, mas não consegui salvar a gravação no celular. É preciso dominar as tecnologias, Rita! Ele nos deu o presente da paisagem. As fazendas, as bromélias sobre árvores gigantes, postes e pedras. As pedras pretas se derramam sobre aquela paisagem como se espátulas certeiras acertassem a tela e o pintor fosse, em verdade, um poeta.

Itatelino é um velho conhecido de todos por ali, portanto passávamos e pousávamos nos lugares. Entrar nas fazendas, poder visitá-las e fotografá-las foi maravilhoso. Naquele passeio cujo propósito era fotografar barcaças - grande paixão que me acompanha desde a infância - senti o que acontece quando estamos em belos lugares. Não moramos ali, mas desfrutamos do lugar. Logo, somos donos. Talvez aí resida o sentido da posse. Apossar-se deve ser assim parecido com o tomar conta do lugar, torná-lo seu. Senti-me dona daquelas terras por amá-las.

Amar as barcaças sem ser fazendeira ou filha de fazendeiros. Contemplar a beleza que nelas há, apesar das histórias de exploração. Amá-las porque são poéticas no seu discurso arquitetônico, na forma de telhado que assumiram, na disposição das cores que compõem o conjunto das construções. Confesso que sou devota de telhados e de telhas. Entender a harmonia do zinco com a necessidade de calor das sementes. Senti-lo com o respeito devido à sua adequação ao lugar. Entender a natureza das coisas. Aprender com o tempo. Aprender com os olhos que já chegaram aos quarenta e começam a perder a acuidade, por isso precisam desenvolver intuições ocultas, sentidos inauditos, percepções finas, e não podem prescindir das lentes.

Apreciei com agudez cada instante que passamos ali. Ouvi sobre a lavoura, o funcionamento das barcaças, senti a textura da madeira nos cochos onde ficam as sementes quando chegam da colheita e o perfume do lugar. Entendi um pouco sobre o tempo das sementes naquelas caixas de madeira. Encontramos as barcaças fechadas com cadeados, daí não podermos abri-las. As barcaças se abrem!  Movem-se sobre os trilhos. Assim as sementes secam ao sol e as barcaças fecham-se para protegê-las da umidade. A educação das barcaças.

Voltar a Itajuípe foi um reencontro comigo mesma e com tantas lembranças de acontecimentos remotos, dias longínquos, infância, adolescência e juventude. Era eu novamente a menina viajando com a família para Itapitanga. Íamos visitar os parentes maternos e principalmente a minha bisavó Ester Ferreira. Morávamos em Itabuna àquela época. Aquelas ruas nos eram familiares. As curvas na saída da cidade, o Rio Almada partindo o caminho, a ponte mágica - como todas as pontes o são - as escadarias da Igreja Coração de Maria. O meu pai continua vivo provocando as sensações que somente a filha primogênita sente. Uma necessidade de consentimento tardio ainda perdura. Como também a vontade de ser aprovada e perdoada por ele. Às vezes, cada vez mais raramente, chega o ímpeto de desafiá-lo.

A trajetória da cultura do cacau na Região deixou marcas indeléveis, como aconteceu em toda parte onde o poder das oligarquias agrárias foi preponderante. Uma delas é a velha pergunta: você é de que família? Sou da família Santana de Ilhéus. Aqui, o encontro com o livro. O padre Antônio Vieira viveu uma verdadeira saga devido à sua ascendência. A sua avó teria sido índia ou negra e se envolvera afetivamente com Baltazar Vieira Ravasco, ambos serviçais de uma casa nobre. Desse envolvimento nasceu Cristóvão, pai de Antônio Vieira. A Inquisição, incomodada com as ideias políticas do padre, sempre questionou a sua origem. O Tribunal da Inquisição chegou mesmo a publicar sobre ele: “pessoa de cuja qualidade de sangue não conta ao certo”. Vivia-se num período de discriminações de toda ordem. Perseguiam-se os cristãos-novos, os judeus e os escravizados. O quadro social de Portugal, segundo o autor, era de perseguições étnicas, religiosas e sociais. A escravidão por lá, desde o século XVI, atingia negros, indígenas do Brasil e mouros aprisionados durante as batalhas. Pensar que aproximadamente um quinto da sua população era de escravos em 1532 é um assombro. Olhava as folhas do mamoeiro e pensava.

A leitura prossegue. Vilela nos leva para Portugal onde, diante da nobreza, o padre proferiu o discurso da 3ª Dominga do Advento. Naquele texto, ele questionava o significado da palavra nobreza na gramática da nossa língua. Apenas dois sentidos eram abarcados: sangue (procedência) e qualidade (função social). Vieira opôs-se a esse reducionismo semântico afirmando que somente suas ações poderiam qualificar um homem “porque as ações de cada um são a sua essência.” Atrelei o meu Santana - íntima e simbolicamente - aos insurrectos do Engenho de Santana. A cada dia sei que não posso parar de me construir. É incessante a busca para Ser.

Enquanto a chuva caía e o cenário chumbo arrebatava a minha alma, refletia sobre os cineclubistas de Itajuípe. Levar o cinema a um público diverso e provocar deslocamentos e reconstruções é uma ação nobre. Quantos nobres nós encontramos por lá! A formação de plateia oportuniza a descoberta dos desejos individuais e a construção coletiva. A câmera chega aos cineclubes para que a projeção vá além dos filmes exibidos. É necessário produzir discursos.

Eu testemunhei o cacau na pequena roça da minha bisavó. Vi o seu casarão abarrotado de sacas, por onde brincávamos. Na porta da minha casa em Ilhéus, defronte dos Armazéns Gerais, eu vi as trapicheiras nos trapiches manejarem agulhas imensas para o arremate dos sacos de aniagem. Testemunhei as sementes espalhadas pelas calçadas secando ao sol. O cheiro de tudo aquilo está em mim. Sei que as barcaças e a paisagem nunca foram minhas! Mas nelas finquei minha bandeira vermelha e estendi lonas pretas, montei barracas. A minha nobreza, Padre, vem de ter tomado posse desse tesouro de terras, de cheiros, imagens e construções. Tornei-me meeira, posseira e lavradora de toda a tradição improdutiva. Tomei posse, fiz assentamento. Até hoje labuto pra Ser. Atenção! As barcaças se movem!

Um comentário:

  1. Quanta beleza em sua escrita, Ritinha. Seus textos provocam molezas na alma da gente. Você é uma belíssima escritora, minha irmã. Beijos. Ester

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